Foi preciso esperar mais de três décadas para que ele enxergasse algum vislumbre de justiça. Morador de Poitiers (centro-oeste da França), o teólogo Eric Boone, 49, estava na pré-adolescência quando foi abusado por um padre, durante um passeio pelas montanhas. Desde então, viu-se obrigado a conviver com a falta de autoconfiança e com a culpa que ainda carrega. Na antevéspera da divulgação de um relatório inédito de 2.500 páginas, a comissão independente sobre a pedofilia na Igreja Católica revelou, ontem, que a instituição abrigou “entre 2.900 e 3.200 pedófilos” desde 1950. Desse total, dois terços são padres diocesanos.
O documento será oficialmente publicado amanhã e enviado à Conferência Episcopal da França (CEF) e à Conferência de Religiosas e Religiosos de Institutos e Congregações (Corref), que encomendaram a investigação. Durante as últimas sete décadas, a comissão avaliou uma população de 115 mil padres ou religiosos.
Jean-Marc Sauvé, presidente da comissão de inquérito, admitiu à agência France-Presse (AFP) que esses números representam uma “estimativa mínima”. Ele não descartou que o total de abusados chegue a 10 mil. Criada em 2018, a comissão — formada por 22 profissionais, entre eles advogados, médicos, historiadores, sociólogos e teólogos — recebeu 6.500 denúncias por telefone, nos primeiros 17 meses de trabalho, e manteve 250 audiências ou interrogatórios.
Boone deu uma pequena parcela de contribuição, ao prestar formalmente depoimento. “Fiquei surpreso com a magnitude desse número. Imaginei que eu fosse um caso isolado. Esses dados nos forçam a pensar sobre o aspecto sistêmico dessa crise sem precedentes na Igreja Católica francesa. Estudos em outras ações mostram que ela possui uma dimensão internacional”, afirmou ao Correio. “Espero muito deste relatório: que a minha Igreja (continuo católico) avance não somente com palavras de compaixão e com orações, mas também com ações. A organização eclesiástica deve evoluir, a fim de que a palavra circule mais, baseada na verdade, e que seu discernimento seja mais seguro.”
O teólogo que um dia foi uma criança abusada por um padre ainda precisa lidar com as sequelas da violência sexual. “Infelizmente, encontrei uma pessoa má pelo caminho. Os efeitos desse crime são terríveis. Mas, tenho a sorte de contar com uma esposa amorosa e com filhos que me ajudaram a me aceitar e a seguir adiante”, afirmou Boone. “Fui capaz de me beneficiar de um longo tratamento com um psicólogo. Ele ajudou-me a recuperar a autoconfiança.”
Por meio do Twitter, a Conferência Episcopal da França publicou uma oração às vítimas. “Senhor, nós lhe confiamos todas as pessoas que sofreram violências e agressões sexuais dentro da Igreja. Que elas possam contar sempre com o vosso apoio e com o nosso apoio, em tempos de provação”, diz o texto. “Que, à imagem do Teu Filho, cuidemos dos mais pequenos e frágeis, para fazer de nossa Igreja ‘uma casa segura’. Dê-nos o seu espírito de humildade, para que vivemos na esperança dos dias que virão. Amém.”
“Atrocidades”
Em 2016, 23 anos depois de ser abusado por um padre, o cantor Olivier Savignac fundou a Parler et Revivre (“Falar e Reviver”), uma associação que acolhe e presta assistência a vítimas de pedófilos na França. Em entrevista ao Correio, por telefone, Savignac, 41, admitiu que o inquérito revela a verdade sobre o sistemismo, “o mecanismo de atrocidades sexuais que perdura na Igreja Católica francesa há sete décadas”. “Esse número pode ser muito maior. Eu acredito em pelo menos 5 mil padres abusadores. É o maior escândalo da história da Igreja no país e o maior inquérito sobre abusos sexuais dentro de uma instituição na França”, comentou.
Savignac explicou que, em 2019, a comissão independente liderada por Sauvé começou a estudar estatística e análises probabilísticas para chegar ao número de religiosos pedófilos. “Após lançar enorme luz sobre o fenômeno dos abusos na Igreja, esse relatório pode trazer alguma justiça às vítimas. Os fatos são muito antigos e, por isso, muitos de nós não podíamos contar com um julgamento nos tribunais. A Igreja tem que tomar medidas em prol das vítimas”, cobrou.
De acordo com ele, nove em cada 10 casos de abusos prescreveram. “Espero que a Igreja indenize as vítimas. Independentemente se a violência ocorreu há 10 ou 50 anos, é importante sermos reconhecidos como vítimas. Também espero que comissão semelhante seja instalada, em breve, no Brasil.”
Relatos do horror
“Eu tinha 13 anos. Aconteceu em um acampamento para jovens cristãos, durante o verão. O diretor do acampamento era um padre e abusou de pelo menos 10 crianças e adolescentes naquela ocasião. Ele tocou o meu corpo e o meu pênis. Primeiro, fiquei surpreso com aquilo. Depois, veio uma paralisia. Não consegui fazer nada. Eu me senti como se fosse um prisioneiro. Isso afetou o desenvolvimento da minha sexualidade e da minha personalidade. Quando ainda era jovem, decidi, depois da agressão, que não teria uma namorada ou relacionamento com uma garota. Para mim, tudo se rompeu.”
Olivier Savignac, 41 anos, fundador do grupo Parler et Revivre
(“Falar e Reviver”), morador de Rodès (sul da França)
“Fui vítima de um padre dominicano, no início da década de 1980. Eu tinha entre 12 e 15 anos. O padre era muito próximo de minha família. Ele me levou para um passeio nas montanhas e foi lá que isso aconteceu. Um longo silêncio se seguiu. Este religioso era um teólogo bastante conhecida. Imaginei que ninguém jamais acreditaria em mim. Levou várias décadas para que o assunto viesse à tona. Eu destaco o apelo do papa Francisco em sua Carta ao povo de Deus, em 2018 (no documento, o pontífice reconheceu o fracasso da Igreja Católica em lidar com a crise provocada pela pedofilia).”
Eric Boone, 49 anos, teólogo, morador de Poitiers
(centro-oeste da França)
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