Migração

Deportação de haitianos agrava crise migratória e aumenta críticas a Biden

Semana passada, mais de 10 mil imigrantes cruzaram a fronteira no trecho do Rio Grande que separa as cidades de Del Rio, no Texas, e Ciudad Acuña, no Estado mexicano de Coahuila

A crise dos imigrantes haitianos no Texas seguiu ontem arranhando a imagem do presidente Joe Biden. O enviado especial dos EUA ao Haiti, Daniel Foote, entregou o cargo em uma carta endereçada ao secretário de Estado, Antony Blinken. Na mensagem, ele afirma não querer ser associado à decisão do governo de deportar em massa os refugiados de maneira "desumana" e "contraproducente".

"Não vou me associar à decisão desumana e contraproducente de deportar milhares de refugiados para o Haiti, um país onde as autoridades americanas estão confinadas a complexos seguros por causa de gangues armadas. Nossa abordagem permanece errada, minhas recomendações foram ignoradas e rejeitadas, quando não editadas para projetar uma narrativa diferente da minha", escreveu Foote.

Esta semana, o governo americano intensificou a deportação de haitianos que chegam em busca de asilo. No fim da semana passada, autoridades estimavam que mais de 10 mil imigrantes tenham cruzado a fronteira no trecho do Rio Grande que separa as cidades de Del Rio, no Texas, e Ciudad Acuña, no Estado mexicano de Coahuila. Mais de 29 mil haitianos chegaram aos EUA nos últimos 11 meses, segundo dados da Alfândega e Proteção de Fronteiras americana (CPB, na sigla em inglês).

No começo da semana, cerca de 15 mil pessoas se abrigavam em acampamentos improvisados debaixo da ponte internacional, entre Del Rio e Ciudad Acuña, enquanto agentes trabalhavam para processar os pedidos de asilo. Segundo autoridades, o acesso a água potável e a alimentos é escasso e as condições de higiene são precárias.

A crise fez o governo americano intensificar o número e a capacidade dos voos de deportação de haitianos. Desde domingo, estima-se que 500 pessoas tenham sido enviadas de volta ao Haiti - o plano é despachar sete voos diários, em uma campanha de deportação em massa.

"O povo do Haiti, atolado na pobreza, refém do terror, sequestros, roubos e massacres de gangues armadas e sofrendo sob um governo corrupto, não pode suportar a volta forçada de migrantes sem comida, abrigo e dinheiro. É uma tragédia humana evitável. O Estado em colapso é incapaz de fornecer segurança e serviços básicos. Mais refugiados alimentarão ainda mais o desespero e o crime", escreveu Foote na carta.

Em meio à pressão causada pela imigração, a reação das autoridades americanas provocou críticas. No domingo, cinegrafistas e fotógrafos gravaram cenas de agentes da CPB montados a cavalo tentando caçar os refugiados. Uma investigação foi aberta pelo Departamento de Segurança Interna.

Após o escândalo, o governador do Texas, o republicano Greg Abbott, enviou uma frota de carros oficiais para serem enfileirados por quilômetros, formando uma barricada ao longo da fronteira. A "parede de aço" foi a solução encontrada pelo governador - que defende a construção de um muro na fronteira do Texas - para impedir a travessia de mais migrantes.

Arrogância

Ao Estadão, o ex-representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti entre 2009 e 2011, Ricardo Seitenfus, classificou a carta escrita pelo diplomata americano como "um documento histórico" que descreve uma política americana de cerca de dois séculos que nunca contribui para o desenvolvimento haitiano.

"Reiteradamente, os EUA cometem os mesmos erros no Haiti há anos. Os resultados são catastróficos, mas boa parte do país não vê ou sente os efeitos dessa política. Dessa vez, o resultado está se apresentando diante de todos, com as imagens dos policiais a cavalo tentando laçar os haitianos que cruzaram a fronteira. Isso contradiz tudo o que sempre foi afirmado sobre o Haiti, sobre as missões de paz terem sido um sucesso", disse.

Na carta de demissão, o ex-enviado especial americano também criticou o governo Biden por apoiar o primeiro-ministro de facto do Haiti, Ariel Henry, indicando que a Casa Branca não aprendeu com os erros de "intervenções" anteriores. Recentemente, um promotor de Porto Príncipe apontou uma possível relação de Henry com o assassinato do ex-presidente haitiano Jovenel Moise, chegando a pedir a abertura de um inquérito contra ele. O premiê destituiu o promotor no mesmo dia.

"A arrogância que nos faz acreditar que devemos escolher o vencedor - mais uma vez - é impressionante. Esse ciclo de intervenções produziu resultados catastróficos. Mais impactos negativos para o Haiti terão consequências calamitosas, não apenas no Haiti, mas nos EUA e na região", escreveu Foote.

Além de uma agenda de política externa, os imigrantes haitianos se transformaram em uma crise interna para o governo Biden, que assumiu a presidência com a promessa de um tratamento mais humanitário aos refugiados - um antagonismo claro ao discurso de Donald Trump.

As cenas de faroeste envolvendo aos agentes da CPB e a decisão de deportar os haitianos em massa e o mais rapidamente possível enfureceu a comunidade haitiana e defensores de direitos humanos, incluindo democratas. Houve protestos em Miami, cobrando igualdade no sistema de imigração, considerado racista. Congressistas, como a deputada democrata Alexandra Ocasio-Cortez, de Nova York, também demonstraram descontentamento com as ações de Biden.

Ao mesmo tempo em que sofre pressões de aliados, o governo tenta dar uma resposta à população de Estados fronteiriços, especialmente o Texas, que sofrem com os efeitos imediatos da imigração desordenada. O governador do Texas criticou Biden, afirmando que ele teve de desembolsar US$ 2 bilhões para ampliar a segurança na fronteira. "Foi o Estado do Texas que teve de se esforçar", disse.

Na tentativa de responder às duas fontes de pressão, Biden busca alternativas para lidar com a crise. Ontem, a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, anunciou que o governo ordenou a suspensão das patrulhas de agentes montados a cavalo em Del Rio - que havia provocado as críticas mais ferrenhas de aliados e ativistas. Ao mesmo tempo, como resposta aos grupos que questionam a capacidade do governo de proteger o território, a Casa Branca decidiu manter os voos de deportação, apesar da insatisfação da base progressista.

Esta semana, o secretário de Segurança Interna dos EUA, Alejandro Mayorkas, justificou algumas das medidas adotadas pelo governo, como as deportações, afirmando que muitos haitianos estavam chegando ao país após receberem informações falsas de que a fronteira estaria aberta e o governo teria concedido status de proteção temporária. "Esse governo está empenhado em desenvolver caminhos seguros, ordenados e humanos para a imigração", disse Mayorkas. "Mas essa não é a maneira de fazer isso." (Com agências internacionais)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.