A carta de renúncia assinada por Daniel Foote, enviado especial dos EUA ao Haiti, e endereçada ao secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, deu a medida exata da proporção da crise migratória na fronteira com o México. “Eu não estarei associado à decisão desumana e contraproducente dos Estados Unidos de deportar milhares de refugiados haitianos e imigrantes ilegais para o Haiti”, escreveu o diplomata. “Nossa abordagem política para o Haiti permanece profundamente defeituosa, e minhas recomendações têm sido ignoradas e descartadas, quando não editadas para projetarem uma narrativa diferente de meu ponto de vista.” Além das deportações, agentes da Patrulha Fronteiriça dos EUA foram flagrados, em vídeos e fotos, montados a cavalos em perseguição aos haitianos na região de Del Río, no Texas.
Após estarrecerem a Casa Branca e o Congresso, as imagens forçaram o Departamento de Segurança Interna (DHS, pela sigla em inglês) a suspender o uso dos cavalos. O secretário de Segurança Nacional, Alejandro Mayorkas, “informou nesta manhã aos líderes dos direitos civis que não usaremos mais cavalos em Del Río”, declarou a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki. “Nós interrompemos, temporariamente, o uso da patrulha a cavalos em Del Río. Vamos priorizar outros métodos para identificar indivíduos que possam estar em perigo de saúde”, admitiu um funcionário do DHS. Na mexicana Ciudad Acuña, cidade vizinha a Del Río, dezenas de policiais do México irromperam um acampamento de imigrantes, antes do amanhecer, e obrigou muitos a retornarem para Tapachula, a 2.452km, próximo à fronteira com a Guatemala. Eles rejeitaram abandonar o local.
Para Stephen Yale-Loehr — professor de práticas de leis de imigração da Universidade de Cornell —, a renúncia de Foote intensifica a pressão política para que Biden suavize a posição do governo em relação à deportação dos haitianos. “As inúmeras situações de migração, incluindo afegãos e pessoas tentando cruzar a fronteira entre EUA e México, torna mais difícil para o presidente Biden avançar em sua agenda legislativa sobre a imigração. Dadas as críticas direcionadas ao governo, com ou sem razão, é muito mais difícil persuadir o Congresso a legalizar vários milhões de imigrantes”, afirmou ao Correio.
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Especialistas
Por sua vez, Steve Forester, coordenador de Política de Imigração do Instituto para Justiça e Democracia no Haiti (em Boston), explicou à reportagem que a decisão de Foote não está associada apenas às deportações de haitianos, mas à “política fracassada dos Estados Unidos para o Haiti”. “Há mais de uma década, os governos norte-americanos apoiaram líder corruptos e antidemocráticos às custas da sociedade civil”, lembrou. “Os haitianos amam seu país e querem permanecer no Haiti. A política da Casa Branca para o país caribenho tem sido de mão pesada. Espero que a renúncia de Foote obrigue o presidente Biden a apoiar a sociedade civil no Haiti, a qual, além de competente, está pronta para assumir suas funções.” Forester sublinha que a democracia é importante não apenas para os norte-americanos, mas também para o povo haitiano.
Doutor em estudos latino-americanos e professor de análise política da Universidade de Estado do Haiti, Elinet Daniel Casimir explicou ao Correio que o problema migratório envolvendo os haitianos remonta ao século passado. “Nessa trajetória, encontram-se muitos aspectos que têm relação com a vida social, política e econômica da sociedade do Haiti. Vivemos sob a lupa dos Estados Unidos. Os haitianos praticamente não têm vida. Os políticos e alguns grupos organizados têm a responsabilidade por essa situação tão delicada e complexa”, afirmou. “Como os EUA não pensam em ajudar o meu povo? Estamos diante do direito internacional sobre a migração, dos direitos humanos e de convenções internacionais. Nestes acordos, existe um fator muito importante: o capital humano. Todo mundo vê que o povo haitiano está farto de tudo. Algumas pessoas abandonaram o país rumo ao Chile, ao Equador, à Argentina e ao Brasil, e, sobretudo, aos Estados Unidos”, acrescentou.
Casimir lembra que os haitianos têm direito de solicitar asilo. “A deportação deles pode ser analisada desde um duplo aspecto em matéria de direitos humanos: a humilhação racial e o descobrimento perverso da face dos Estados Unidos”, disse o estudioso, morador de Porto Príncipe.
“Eu não estarei associado à decisão desumana e contraproducente dos Estados Unidos de deportar milhares de refugiados haitianos e imigrantes ilegais para o Haiti”
“Nossa abordagem política para o Haiti permanece profundamente defeituosa”
Daniel Foote, enviado especial do Departamento de Estado norte-americano para o Haiti
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Começo turbulento
Com 247 dias no comando dos Estados Unidos, o presidente Joe Biden enfrenta um início de governo conturbado. Em pouco mais de um mês, o democrata amargou três crises de grandes proporções — duas na política externa e uma no cenário doméstico. A retirada militar acelerada do Afeganistão, depois que o Talibã reassumiu o controle do país, causou mal-estar entre os EUA e os integrantes da coalizão militar que ocupou o território afegão por 20 anos. O retorno da milícia fundamentalista islâmica, depois da capitulação vergonhosa do Exército do Afeganistão e da fuga do presidente Ashraf Ghani, escancarou a falta de estratégia norte-americana. Biden viu-se obrigado a explicar o inexplicável.
Em 15 de setembro, os Estados Unidos selaram um acordo bilionário para a venda de submarinos com propulsão nuclear para a Austrália. Detalhe: os australianos tinham assinado um pacto para construir submarinos convencionais, seguindo um projeto francês. Com a desistência do negócio, a França ficou a ver navios e denunciou uma punhalada pelas costas. Foi preciso um mea-culpa de Biden para resfriar a crise e tentar salvar a confiança entre históricos parceiros comerciais.
No cenário interno, pelo menos 12 mil imigrantes ilegais — a maioria de haitianos — montaram acampamento sob uma ponte da cidade de Del Río, no Texas, no lado norte-americano do Río Grande. Biden decidiu pela deportação em massa, a mesma política defendida pelo antecessor, o republicano Donald Trump. Na quarta-feira, pesquisa do instituto Gallup revelou que Biden atingiu a mais baixa popularidade em oito anos de governo: 43%. Pela primeira vez, mais de 50% (53%) da população desaprova a gestão democrata. (RC)
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“A Casa Branca está presa em um dilema político. O presidente Joe Biden herdou as crises migratórias em grande parte deflagradas por Donald Trump. Não existe uma solução fácil ou rápida para esses problemas.”
Stephen Yale-Loehr, professor de práticas de leis de imigração da Universidade de Cornell