Na primeira conversa por telefone com o colega francês Emmanuel Macron desde o início de uma crise diplomática envolvendo um acordo para a compra de submarinos (veja quadro), oito dias atrás, o presidente norte-americano, Joe Biden, acenou com o reconhecimento dos erros dos Estados Unidos na abordagem das negociações. Ambos sinalizaram com o restabelecimento da confiança entre os dois países, aliados históricos, e anunciaram uma reunião presencial para o fim de outubro, na Europa.
“Os dois líderes concordaram que a situação teria se beneficiado de consultas abertas entre aliados sobre questões de interesse estratégico para a França e para nossos parceiros europeus. O presidente Biden expressou seu compromisso contínuo a esse respeito”, afirma um comunicado conjunto divulgado pela Casa Branca, segundo o qual o tom da conversa foi “amigável”.
Em 15 de setembro, Austrália, EUA e Reino Unido firmaram um pacto de defesa estratégica, conhecido como Aukus. O governo do premiê australiano, Scott Howard, desistiu de um projeto francês para a construção de submarinos convencionais e priorizou, dentro do Aukus, a aquisição de submarinos de propulsão nuclear fabricados pelos Estados Unidos. Com isso, a França foi alijada de um negócio de US$ 66 bilhões (cerca de R$ 347 bilhões).
Segundo a nota, Biden e Macron “decidiram abrir um processo de consultas aprofundadas, com o objetivo de criar as condições para assegurar a confiança e propor medidas concretas rumo a objetivos comuns”.
Em um gesto de desescalada das tensões, Macron determinou o retorno de Philippe Etienne, embaixador da França, a Washington — em 17 de setembro, o Palácio do Eliseu convocou o diplomata a Paris, em um gesto de forte desagravo. O encontro dos presidentes deve ocorrer entre 30 e 31 de outubro, provavelmente em Roma, sede da cúpula do G20 (as 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia).
Engajamento
A Casa Branca explicou que Biden reafirma a “importância estratégica do engajamento franco-europeu na região do Indo-Pacífico”. “Os Estados Unidos também reconhecem a importância de uma defesa europeia mais forte e mais capaz, que contribua positivamente para a segurança global e transatlântica e seja complementar à Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte)”, diz o comunicado.
Em visita a Washington, depois de discursar na 26ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, lembrou que a aliança Aukus “não é exclusiva” e que “não tenta excluir ninguém”.
Codiretora do Programa para o Leste da Ásia e Diretora do Programa sobre a China do instituto Stimson Center, em Washington, Yun Sun afirmou ao Correio que a França se mostra “enfurecida com razão, pois o acordo firmado com os EUA significa que a Austrália não mais buscará o pacto orçado em bilhões de dólares para a compra de submarinos convencionais de Paris”.
“Mas não vi o incidente como a traição de um aliado. Este é um mundo livre, com uma economia de mercado. Se os Estados Unidos ofereceram um acordo melhor para a Austrália, a desistência dos australianos em negociarem com os franceses foi apenas uma questão de tratativas comerciais”, opinou.
Para Yun, a aquisição de submarinos nucleares dos EUA, por parte da Austrália, é uma mensagem e um passo concreto para se contrapor à ameaça representada pela China. “Não se trata somente de aumentar a capacidade de defesa australiana, mas também de aproximar os aliados da região do Indo-Pacifico. Isso terá efeito cascata sobre a corrida armamentista — outros países buscam submarinos nucleares norte-americanos”, observou a especialista. Ela entende que a China pode calcular que a estabilidade estratégica na região está prejudicada, o que exigiria de Pequim o aumento de sua própria capacidade militar para recuperar o equilíbrio.
» Da tensão ao alívio
Entenda a crise diplomática envolvendo os estados unidos e a França
Acordo cancelado
Em 15 de setembro, a Austrália cancelou um acordo de US$ 66 bilhões (ou R$ 347 bilhões) com a França para a construção de submarinos convencionais.
Pacto estratégico
No mesmo dia, horas depois, Austrália, Estados Unidos e Reino Unido firmaram um acordo secreto chamado Aukus. O pacto permitirá aos três países “uma integração mais profunda da ciência, da tecnologia, das bases industriais e das cadeias de abastecimento relacionadas à segurança e à defesa”.
Submarinos nucleares
Por meio da Aukus, a Austrália comprará submarinos de propulsão nuclear de tecnologia norte-americana, ignorando o acordo firmado com a França.
Punhalada nas costas
O ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, declarou que a decisão de anular a compra de submarinos convencionais franceses foi uma “punhalada nas costas”. Também em 16 de setembro, o chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrell, lamentou que o bloco não tenha sido informado a tempo sobre a Aukus.
Consulta de embaixadores
Em 17 de setembro, a França convocou para consultas seus embaixadores nos Estados Unidos e na Austrália.
Conversa telefônica
Ontem, os presidentes Joe Biden (EUA) e Emmanuel Macron (França) conversaram por telefone e prometeram restabelecer a confiança diplomática. O embaixador da França em Washington, Philippe Etienne, retornará à capital dos Estados Unidos na próxima semana.