A ressaca eleitoral causada pela derrota do peronismo nas eleições primárias para as legislativas de novembro teve tom de cobrança e de decepção. A ala dura do kirchnerismo, na figura do dirigente social Juan Grabois, do sindicalista Luis D’Elía e da ativista Hebe de Bonafin (fundadora das Mães da Praça de Maio), exigiu mudanças urgentes no gabinete ministerial da Casa Rosada. A aliança governista Frente de Todos, que engloba distintas facções do peronismo de centro-esquerda, obteve menos de 31% dos votos no território nacional, perdeu 4,8 milhões de votos e sofreu importantes retrocessos em distritos eleitorais tradicionais. Na província de Buenos Aires, a mais rica e populosa da Argentina, a coalizão opositora Juntos por el Cambio, do ex-presidente Mauricio Macri, venceu por 15,2 pontos percentuais, ou 1,7 milhão de votos. “Alguma coisa não teremos feito bem”, reconheceu o presidente Alberto Fernández. “Confio em que o caminho que iniciamos em 2019 não se altere.”
O resultado das primárias impacta negativamente o governo de Fernández e da vice, a ex-presidente Cristina Kirchner. Para estudiosos consultados pelo Correio, o revés seria o produto de um país imerso numa crise econômica e ante uma gestão incapaz de responder aos anseios dos 45,5 milhões de argentinos. “Há uma sensação de espanto e de expectativa em toda a classe política argentina, tanto no governo quanto na oposição. Isso porque a maioria dos analistas se baseava em pesquisas de intenção de voto que apresentaram números muito díspares dos resultados da apuração provisória”, comentou Facundo Galván, especialista e investigador sobre processos eleitorais em três instituições de ensino — Universidad de Buenos Aires e Pontifícia Universidad Católica Argentina e Universidad de Salvador.
“Não restam dúvidas de que o principal derrotado foi o peronismo. Isso está no fato de que, enquanto a oposição manteve quase intacto o seu capital eleitoral de 2019 (40% dos votos em âmbito nacional), a aliança Frente de Todos viu despencar, de maneira importante, seu suporte eleitoral, sobretudo nos distritos com maior população urbana da Argentina”, disse Galván. Ele frisou, no entanto, que as eleições legislativas de novembro nem sempre implicam a antecipação do resultado do próximo pleito. Galván lembra que, em 2009, a presidenta Cristina Kirchner sofreu um revés na eleição de meio de mandato e, dois anos depois, o kirchnerismo conquistou a reeleição. “O caminho a percorrer até 2023 é muito extenso. Tudo dependerá de como se reacomodarão as forças no oficialismo e na oposição, onde ao menos três partidos nacionais têm dois anos para coordenar uma fórmula presidencial competitiva.”
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Moderação
Especialista em opinião pública e comunicação de governo que participou de 140 campanhas eleitorais na Argentina e na América Latina, Carlos Fara avalia o revés nas primárias de domingo como uma resposta a Alberto Fernández. Segundo ele, o peronista chegou ao poder, dois anos atrás, com a expectativa de moderar o estilo e o conteúdo ideológico. “Claramente, ele não cumpriu com a promessa. Mostrou-se um presidente alheio às demandas populares. A sociedade argentina comunicou, por meio das urnas, um estado de angústia, frustração e incerteza. Isso contribuiu com o resultado eleitoral adverso”, disse ao Correio.
Fara adverte que qualquer mudança no gabinete da Casa Rosada se mostrará “bastante complicada”. “Uma demissão abriria a oportunidade para que Cristina Kirchner exija uma pessoa de sua confiança como substituta. Isso surtiria no enfraquecimento do presidente”, comentou. Por sua vez, Miguel De Luca — cientista político da Universidad de Buenos Aires — acredita que Fernández poderá escolher dois caminhos, após o revés nas primárias. “A primeira opção é ratificar o rumo e manter os ministros. Ou seja, confirmar a orientação política e dizer, na frente de todos, que ele tem confiança nos assessores. Tal decisão seria vista como falta de reação ao revés do último domingo”, explicou à reportagem.
A segunda opção, de acordo com De Luca, envolveria a substituição de funcionários-chave, como o chefe de gabinete, Santiago Cafiero. “Isso daria um ‘novo ar’ ao governo e mostraria Fernández mais atento ao resultado das primárias. Mas, também, abriria as portas para disputas internas entre setores distintos do peronismo. Nesse cenário, Cristina ganharia mais poder e, com isso, debilitaria a desgastada figura do presidente”, afirmou. De Luca avalia que as primárias de anteontem funcionaram como uma espécie de censo, por medirem o nível de consenso em relação ao governo nacional.