As palavras iniciais do franco-marroquino Salah Abdeslam — acusado de integrar o comando extremista que matou 130 pessoas em cinco pontos distintos de Paris — evocaram a chahada, a profissão de fé dos muçulmanos. “Em primeiro lugar, quero testemunhar que não há outro Deus, senão Alá, e que Maomé é seu servo e mensageiro”, declarou, diante do juiz e presidente do tribunal, Jean-Louis Périès, no Palácio da Justiça. “Veremos isso mais tarde”, respondeu o magistrado.
A seguir, Abdeslam, 31 anos, proferiu um atestado de culpa: “Desisti de exercer qualquer profissão para me tornar um combatente do Estado Islâmico (EI)”. “Agora, julguem-me, façam o que quiser de mim. (…) Não tenho medo de vocês. (...) Coloco minha confiança em Alá e isso é tudo, não tenho nada a acrescentar”, declarou o principal réu.
Abdeslam denunciou que as autoridades francesas o tratam como se fosse um cão. A previsão é de que o veredicto somente seja anunciado em maio de 2022. O processo conta com quase 1.800 partes civis e 20 réus, seis deles julgados à revelia. Durante 145 dias, serão inquiridos 330 advogados e 300 sobreviventes, de acordo com a emissora France 24. Em novembro, o ex-presidente Françoise Hollande será ouvido, na condição de testemunha. Além de Abdeslam, 13 réus tambèm começaram a ser julgados, ontem. Pelo menos 550 pessoas assistiram, ontem, à sessão na Corte, incluindo advogados e dezenas de partidos civis e de jornalistas.
Périès fez questão de destacar a importância do julgamento. “Os eventos sobre os quais decidiremos estão inscritos em sua intensidade histórica como entre os acontecimentos internacionais e nacionais deste século”, advertiu. Em um gesto nada habitual, o juiz defendeu a preservação da “dignidade da Justiça”. Na noite de 13 de novembro de 2015, três comandos terroristas atacaram a capital da França de forma simultânea. Às 21h20 (16h20 em Brasília), um homem-bomba detonou os explosivos presos ao corpo depois de ter a entrada barrada no Stade de France, onde as seleções da França e da Alemanha jogavam uma partida amistosa.
Um segundo suicida se explodiu às 21h30 em outra entrada do estádio. Três atiradores mataram 39 pessoas em dois bares e dois restaurantes da zona leste. Um terceiro comando terrorista invadiu a casa de espetáculos Bataclan, que estava lotada e sediava um show da banda norte-americana Death Metal Angels. Armados de fuzis, os extremistas executaram 90 franceses e turistas.
Uma das sobreviventes da matança no Bataclan, a jornalista e crítica musical Kelly Le Guen (leia Depoimento), 26 anos, contou ao Correio que o julgamento de Salah Abdeslam pode ser um momento difícil para muitas pessoas. “Infelizmente, o que ocorre no tribunal não mudará o que aconteceu comigo e com todos. Tenho interesse em conhecer os resultados do julgamento, mas não planejo acompanhar os desdobramentos diários”, comentou. Ela disse esperar que Abdeslam seja condenado à prisão perpétua. “Como não temos pena de morte na França, acredito que esta será a sentença, dada a magnitude do evento e como ele está midiatizado.”
Jean-Yves Camus, cientista político do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris, em Paris), explicou à reportagem que a pena capital foi abolida, na França, em 1981. “Na melhor das hipóteses, a pena será prisão perpétua sem liberdade condicional por, no máximo, 30 anos. Não acho que isso seja o mais importante do julgamento”, comentou.
Respostas
Para o estudioso, as deliberações da Corte podem ajudar a sociedade a compreender os motivos pelos quais o Estado Islâmico selecionou os alvos do ataque, em sua maioria jovens de todas os estratos sociais, culturais e étnicos. “Ao acompanharmos o julgamento, tentaremos entender como o ataque foi planejado e preparado, e qual o grau de responsabilidade de cada um dos indiciados. Queremos saber se os serviços secretos fracassaram na detenção de sinais de baixo nível de que um atentado estava à vista, e se, na noite dos ataques, os esquadrões policiais que confrontaram os terroristas responderam de forma adequada. Acho que sim, mas há controvérsias”, afirmou Camus.
O especialista do Iris disse estar curioso para ver como Abdeslam se comportará ante o juiz. “Veremos se ele decidirá falar à Corte, para explicar sua ideologia. Acho que ele ainda está comprometido com o Estado Isâmico. Abdeslam é o tipo de sujeito que não tem possibilidade de retornar à vida normal, mesmo depois de ter cumprido sua pena”, observou Camus.
» Depoimento
“Sou uma sobrevivente e tive muita sorte”
» Kelly Le Guen
“Naquela noite, eu fui ao Bataclan para escrever uma reportagem sobre o show da banda norte-americana Eagles of Death Metal. Eu estava sentada na varanda do andar de cima quando os disparos começaram. Consegui rastejar até a saída de emergência. Vi um dos terroristas. A saída levava a uma escada. Infelizmente, não tive tempo de descer e fugir, pois os tiros estavam cada vez mais próximos. Então, eu e outras pessoas nos escondemos em um dos camarins. Ficamos ali até o fim.
Enquanto eu tentava escapar, vi pessoas serem baleadas. Quando tudo acabou, tivemos de caminhar pelo local para sair. Fomos escoltados pela polícia, mas ainda vi tudo o que tinha para ver, infelizmente. Não vou descrever muito, porque foi extremamente horrível.Vamos dizer que o termo ‘banho de sangue’ é muito preciso.
Não sofri danos físicos. Quanto ao resto, tive muita sorte e não desenvolvi transtorno de estresse pós-traumático. Fico feliz em dizer que o evento não me fez querer deixar meu trabalho ou parar de ir a concertos. Mas, quando estou nas casas de show, penso no atentado. Também me reuni com outros sobreviventes; alguns são meus amigos, hoje. Existe solidariedade entre nós.”
Jornalista especializada em crítica musical, 26 anos. Estava na casa de espetáculos Bataclan, na noite
de 13 de novembro de 2015.