Vestidas com burcas e hijabs (véu islâmico), elas não se amedrontaram quando ficaram frente a frente com talibãs. Nas mãos, cartazes com um grito de resistência — um gesto impensável no Afeganistão sob o primeiro regime da milícia fundamentalista, entre 1996 e 2001. “Pelo direito das mulheres de estudarem e de trabalharem em todas as áreas. Nenhum governo pode ser estável sem o apoio das mulheres”, estampava uma faixa escrita em azul e vermelho. Em um cartaz branco, estava escrito à mão: “Não temam, não temam, estamos unidas!”. Aconteceu, ontem, em Herat, a terceira maior cidade do país, a cerca de 810km a oeste de Cabul. Enquanto marchavam pelas ruas, elas repetiam, em uníssono: “Todas vocês devem lutar contra o Talibã. (…) É nosso dever ter educação, trabalho e segurança!”.
“Estamos aqui para reivindicar nossos direitos”, explicou à agência France-Presse Fareshta Taheri, uma das manifestantes, entrevistada pela agência France-Presse, por telefone. “Mulheres e meninas temem que o Talibã não permita que elas frequentem a escola e trabalhem”, acrescentou. Situada perto da fronteira com o Irã, Herat é considerada uma cidade bastante liberal, pelo menos dentro dos padrões do Afeganistão. Fareshta admitiu à AFP que está disposta a usar a burca, caso os talibãs exijam esse código de vestimenta. No entanto, ressaltou o desejo das mulheres de irem à escola e ao trabalho e lembrou que a maioria das moradoras de Herat decidiu ficar em casa, com medo e incerteza.
Moradora de Cabul, a especialista em gestão educacional Fatima Safari, 24 anos, acredita que a única coisa que as mulheres afegãs podem fazer, no momento, é se manifestarem. “Não podemos esquecer que as participantes do protesto em Herat correm risco. Ainda assim, eu as encorajo a levantarem suas vozes. Todo o mundo está observando a nossa reação ao Talibã. É hora de erguermos nossa voz”, reforçou ao Correio. Segundo ela, a reação dos insurgentes, quando confrontados por jornalistas ou pelas câmeras, costuma ser maquiada. “Não podemos acreditar que o Talibã perdoa as mulheres que trabalharam ou que protestaram. Ainda testemunhamos o assassinato de afegãs inocentes”, disse.
Fatima cita a execução de uma garota, na província de Ghazni. “Ela foi morta pelos talibãs. Ela estava com o seu mahrram (pai, irmão ou tio) e vestia o hijab (véu islâmico). Depois que o talibã a matou a bordo do regsha (tipo de motocicleta), não permitiu que outras pessoas tocassem o corpo dela”, lembra. Por sua vez, a economista Sediqa Hassani, 23, aposta que o ato em Herat pressionará a milícia fundamentalista a incluir as mulheres no governo. “O protesto atrairá a atenção da comunidade internacional para o fato de que os direitos das mulheres estão em perigo sob o regime talibã.
A afegã Patoni Isaaqzai, ativista dos direitos das mulheres, deixou Cabul há duas semanas e, hoje, está em Hamburgo (Alemanha). Ela disse ao Correio que os protestos em Herat “podem ser o início de mais manifestações e de uma rebelião feminina contra o Talibã”. “Vejo essa manobra como muito positiva. O Talibã está desorganizado e busca reconhecimento internacional neste momento. Por isso, esta é a melhor hora para as mulheres agirem”, avaliou. “As afegãs estão em perigo e tentam se mobilizar contra essa vulnerabilidade. Ainda que algumas pessoas pensem que o Talibã mudou, incidentes recentes nos mostram exatamente o oposto. Eles fecharam escolas para garotas e universidades”, exemplificou.
O Talibã deu indícios de que não deve inserir as mulheres no “governo inclusivo” que prometeu, o qual deverá ser anunciado hoje. Questionado sobre o futuro governo, Sher Mohammad Abbas Stanekzai, vice-chefe do gabinete político da milícia, disse à emissora britânica BBC que “pode não haver” mulheres ministras ou cargos de responsabilidade, e que as afegãs ocupariam somente cargos em escalões inferiores.
O jornalista, poeta e escritor Sayed Ali Mosawi Chakawak, morador de Cabul, defendeu a manifestação em Herat. “Elas são nossas mulheres. Nossas esposas, irmãs e filhas. O povo do Afeganistão está com elas, e nós as apoiaremos”, prometeu.
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Embaixada
No fim da noite de ontem, o Talibã anunciou que a China manterá a embaixada em Cabul e intensificará a ajuda ao Afeganistão. O Catar confirmou que negocia com os talibãs a reativação do Aeroporto Internacional Hamid Karzai “o mais rápido possível”, anunciou o ministro das Relações Exteriores, Mohamed bin Abdelrahman al-Thani. O Catar confirmou que trabalha para retomar as operações no local.
Um manifesto pela presença feminina
O documento é assinado por “um grupo de mulheres”. Uma das manifestantes de Herat, Maryam Ebram, divulgou um manifesto em prol dos “direitos básicos” das afegãs. “Nas últimas semanas, não ouvimos falar sobre as presença de mulheres de cor nos escritórios governamentais e privados, universidades escolas e áreas sociais. A presença das mulheres na sociedade foi acompanhada de condições e desavenças”, afirma o texto, que enumera a importância do direito ao trabalho, à liberdade, à presença nas áreas públicas e nas atividades sociais e à segurança. “As mulheres deveriam ter uma presença colorida nos campos político, social e de liderança. (…) Somos metade da sociedade do Afeganistão, e a nossa presença em áreas públicas — como a econômica, cultural e social — é essencial”, acrescenta o comunicado.
» Vozes da resistência
“Todas as conquistas das mulheres afegãs desde 2001 estão mortas. O protesto em Herat mostra que os talibãs não se importam com demandas e com os direitos das mulheres.” Fatima Safari, 24 anos, especialista em gestão educacional, moradora de Cabul.
“Essas mulheres são realmente corajosas, pois arriscam suas vidas para falarem por nós. O Talibã não respeita os direitos das mulheres e acredita que elas não devem aparecer em público. O Talibã é terrorista.” Sediqa Hassani, 23 anos, economista, moradora de Cabul.