O fluxo incessante de migrantes que cruzam atualmente o Canal da Mancha em barcos cada vez mais precários pôs França e Reino Unido em lados opostos.
De acordo com o Ministério do Interior britânico, mais 14 mil pessoas tentaram chegar ao país pelo estreito, excedendo os números de 2020.
Só na semana passada, mais de 1,5 mil pessoas cruzaram o Canal da Mancha. E em um único dia no fim de agosto, 828 fizeram a travessia, um novo recorde estabelecido.
"Os números são inaceitáveis, então estamos agindo em todas as frentes", disse em agosto o comandante britânico Dan O'Mahoney, responsável pelo monitoramento das águas que separam o Reino Unido da França.
"As agências de segurança estão desmantelando as gangues de tráfico de pessoas (que costumam operar a travessia do canal). O trabalho em conjunto com os franceses dobrou o número de policiais nas praias francesas", acrescentou.
Mas essa colaboração se transformou em um foco de atrito entre os dois países.
Por que há mais migrantes cruzando o canal?
"Existem várias razões que explicam o aumento de migrantes que cruzam o canal", diz Peter Walsh, pesquisador do Observatório de Migração da Universidade de Oxford (Inglaterra), à BBC Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
Walsh trabalha analisando dados do Ministério do Interior, das Nações Unidas e de requerentes de asilo no Reino Unido.
Segundo ele, a raiz do problema é "geopolítica". "A maioria dos migrantes vem do Irã, Afeganistão, Iêmen, Síria e Sudão, países em conflito onde há guerras e perseguição política."
"A variação sazonal é outra explicação: o número aumenta quando o mar está calmo e o céu está limpo (como tem acontecido nos últimos dias e semanas)", acrescenta.
O especialista acrescenta que as rotas terrestres estão cada vez mais "inviáveis" para a travessia de migrantes porque são cada vez mais vigiadas. Somam-se a isso as restrições durante a pandemia e devido ao Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia.
'Meia volta'
Na quinta-feira (9/9), a ministra do Interior do Reino Unido, Priti Patel, disse querer devolver à França os barcos que transportam migrantes pelo Canal da Mancha.
Fontes do governo inglês confirmaram à BBC que uma equipe da Força de Fronteira britânica vem treinando há meses para iniciar a operação.
Por essa tática, autoridades britânicas forçariam os barcos de migrantes a dar meia volta no canal. Caberia, então, à guarda costeira francesa interceptar as embarcações em suas águas.
No entanto, a França se opõe ao plano. O ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, disse que "proteger vidas humanas no mar é uma prioridade".
Darmanin também acusou o Reino Unido de "chantagem financeira".
Ele se referia a um acordo fechado no início deste ano, pelo qual os britânicos prometeram pagar à França mais de US$ 75 milhões por operações extraordinárias, incluindo a duplicação do número de patrulhas costeiras.
Patel disse que o Reino Unido poderia reter esse dinheiro, a menos que mais barcos sejam interceptados.
Mas os barcos de migrantes podem ser devolvidos?
Limites legais
O governo britânico alega que a devolução de barcos que passam pelo canal seria legal em circunstâncias limitadas e específicas, embora não tenha confirmado quais.
Ao mesmo tempo, o Reino Unido não poderia entrar nas águas territoriais francesas sem consentimento, o que poderia causar problemas, disse à BBC o professor Andrew Serdy, professor de Direito Internacional Público e Governança do Oceano na Universidade de Southampton (Inglaterra).
"Se a França não quer obrigar os barcos a recuarem, ninguém pode obrigar-lhe a fazer isso", explica Serdy.
Walsh diz que não está muito claro como essa política seria implementada porque a cooperação da França é necessária.
"Sem essa cooperação é muito difícil imaginar como os barcos podem dar meia volta", disse o analista.
Também não está claro se a tática do Reino Unido seria legal de acordo com o direito internacional.
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar afirma que os países são obrigados a "dar assistência a qualquer pessoa que esteja no mar em risco de se perder".
De acordo com o direito internacional, o Reino Unido deve determinar os riscos que cada migrante enfrenta em um barco antes de forçá-lo a sair da água, explica à BBC James Turner, advogado especializado em disputas marítimas.
'Morte na água'
A tática de obrigar os navios a recuarem nunca foi usada no Canal da Mancha antes, mas tem sido usada no Mediterrâneo, disse a Union for Borders, Immigration and Customs (ISU), sindicato que representa funcionários de fronteira, imigração e alfândega no Reino Unido.
Lucy Moreton, da ISU, disse que ficaria "muito surpresa" se o Reino Unido adotasse tal estratégia, descrevendo-a como "morte na água".
"Há, compreensivelmente, muitas limitações, e não se pode fazer isso com nenhuma embarcação que seja vulnerável".
Muitos migrantes dessas embarcações "vulneráveis" são resgatados pela Royal National Lifeboat Institution (RNLI), uma organização sem fins lucrativos que opera na costa da Grã-Bretanha, Irlanda, Ilhas do Canal e Ilha de Man.
"Sempre viremos em auxílio dos que estão em apuros no mar, como temos feito desde nossa fundação, em 1824. Continuaremos a operar [resgates] quando nos forem confiados pela Guarda Costeira Britânica, que inicia e coordena a busca e o resgate", disse um porta-voz da RNLI à BBC News Mundo.
"Quando lançamos nossos botes salva-vidas, operamos de acordo com a legislação marítima internacional, que estabelece que temos permissão, e de fato somos obrigados, a entrar em todas as águas, independentemente dos territórios, para fins de busca e salvamento."
"E quando se trata de resgatar pessoas que tentam cruzar o Canal da Mancha, não questionamos por que eles se meteram em problemas, quem são ou de onde vêm. Tudo o que precisamos saber é que eles precisam de nossa ajuda."
O que acontece com os migrantes que cruzam o Canal da Mancha?
- Se estiverem em águas nacionais do Reino Unido, é provável que sejam levados para um porto britânico.
- Se estiverem em águas internacionais, o Reino Unido trabalhará com as autoridades francesas para decidir para onde levá-los.
- Cada país tem zonas de busca e salvamento.
- Uma lei da União Europeia chamada Dublin III permite que os requerentes de asilo sejam transferidos de volta para o primeiro estado-membro em que eles entraram, mas o Reino Unido não faz mais parte deste acordo e não concordou com um novo para substituí-lo.
Patel se encontrou com seu homólogo francês na quarta-feira para discutir a crise da imigração, mas eles não conseguiram chegar a um acordo.
Em um tuíte, a ministro britânica disse que as negociações foram construtivas. "Deixei claro que obter resultados e interromper as travessias (do canal) era uma prioridade para o povo britânico", disse ela.
Mas Darmanin disse que o emprego de táticas de recuo "correria o risco de afetar negativamente nossa cooperação".
O deputado francês Pierre-Henri Dumont, que representa Calais (cidade francesa de cujos arredores saem muitos barcos com migrantes) declarou que "nada" pode impedir as travessias de embarcações, devido ao tamanho da costa francesa.
"Temos entre 300 e 400 quilômetros de litoral para monitorar todos os dias e todas as noites e é impossível ter policiais a cada 100 metros devido ao comprimento do litoral", explicou.
"Rotas mais seguras"
Várias ONGS pediram ao Home Office (Ministério do Interior) do Reino Unido que adote uma "abordagem mais humana e responsável" em relação aos requerentes de asilo.
A Amnistia Internacional afirmou que as pessoas têm o direito de pedir asilo no Reino Unido e que "fazem viagens perigosas e dependem dos traficantes porque não existem alternativas seguras disponíveis para elas".
"Uma pequena minoria de refugiados globais encontra segurança e quer reconstruir suas vidas no Reino Unido porque eles têm uma família e uma comunidade aqui", disse Tim Naor Hilton, diretor executivo da ONG britânica Refugee Action, à BBC News Mundo.
"O governo deve fornecer alternativas mais seguras, como planos de reunião familiar, vistos humanitários e um compromisso de longo prazo para reassentar 10 mil refugiados por ano."
"A maioria das pessoas no Reino Unido acredita que devemos oferecer abrigo aos necessitados. E vimos uma mudança palpável na opinião pública desde a tragédia no Afeganistão, com doações para instituições de caridade, ofertas de moradia e convocatórias para tratar os refugiados com a dignidade que eles merecem", acrescentou Hilton.
O Refugee Council, um grupo britânico que trabalha com refugiados e requerentes de asilo, apelou à tomada de medidas para ajudar os migrantes.
"Em vez de gastar tempo, recursos e imenso esforço para afastar essas pessoas vulneráveis, este governo deve dar às pessoas opções de rotas seguras para impedir essas viagens perigosas em primeiro lugar."
"Instamos este governo a reconsiderar suas políticas brutais e a pensar sobre as vidas individuais no centro dessas jornadas desesperadas."
Walsh, da Universidade de Oxford, diz à BBC News Mundo que, de acordo com um levantamento do Ministério do Interior, quase todos os migrantes que cruzam o canal e pedem asilo no Reino Unido o fazem porque já têm família no país, pela percepção de que se trata de uma nação pacífica e tolerante, e o fato de que o inglês é o idioma falado.
"Em muitos casos, os próprios migrantes não têm escolha; os contrabandistas decidem por eles", argumenta.
Ele também acredita que essa questão é de grande preocupação para os cidadãos britânicos, mas muito complexa de ser tratada pelo governo, que pode usá-la antes "como algo simbólico para fazer retórica política".
O governo britânico disse que continua a avaliar e testar uma variedade de opções seguras e legais para encontrar maneiras de impedir que pequenas embarcações façam a viagem pelo canal.
Ele também observou que precisa usar todas as táticas possíveis à sua disposição para combater o tráfico de pessoas.
Patel falou em várias ocasiões sobre gangues de crime organizado contrabandeando pessoas para o Reino Unido, e que o novo Projeto de Lei da Nacionalidade e Fronteiras visa "quebrar seu modelo de negócios".
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