20 ANOS DEPOIS

11 de setembro: volta do Talibã evidencia fracasso da Guerra ao Terror

Vinte anos após atentados, a volta do Talibã ao poder no Afeganistão ascende o medo do país se tornar terreno para novos ataques e para violação de Direitos Humanos

Thays Martins
postado em 11/09/2021 06:00 / atualizado em 11/09/2021 09:53
 (crédito: Aamir QURESHI / AFP)
(crédito: Aamir QURESHI / AFP)

Após o 11 de setembro de 2001, o mundo nunca mais seria o mesmo. Como consequência do atentado, os Estados Unidos, junto a um grupo de outros países, deram a partida para a chamada Guerra ao Terror. De lá para cá, o mundo assistiu a uma batalha travada entre o Ocidente e o Oriente Médio em uma disputa que parece interminável. Vinte anos após aquela data fatídica, a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão parecia que já tinha passado da hora. Porém, a saída desastrosa das tropas trouxe ao país um cenário de incertezas muito parecido ao que existia no pré-2001.

A volta do Talibã ao poder acende o alerta para a possibilidade de infração aos direitos humanos e também o medo de ataques terroristas. A nova crise humanitária que o país começa a enfrentar, sem ao menos ter se recuperado, também acende o alerta para como o mundo irá lidar com os refugiados e com a xenofobia já tão presente.

Para especialistas, são vários os caminhos possíveis que o país pode trilhar daqui para frente. No cenário otimista, o Talibã tentará assegurar direitos humanos básicos para conseguir a legitimidade do governo. Mas por outro lado, estudiosos temem que essa ideia fique só no papel e que o país sirva de berço para associações terroristas. "Sem dúvida não serão tempos fáceis. Se o Talibã cumprir a palavra que não vai ter vingança contra aqueles que estavam vinculados ao governo dos Estados Unidos e garantir direitos humanos básicos, eles vão conseguir ter uma certa legitimidade e ser incorporados ao fluxo financeiro e mercado", avalia Felipe Cordeiro, coordenador do curso de relações internacionais da Universidade de São Paulo (USP).

"Mas tem um conjunto de cenários menos otimistas. Já há indícios de que essas lideranças têm controle reduzido nas áreas rurais do país e têm relatos de que violações sérias de direitos humanos estão ocorrendo. O regime voltando como era no fim da década de 1990 vai aumentar o isolamento internacional do país o que vai trazer mais problemas para a população com condições econômicas ainda piores”, lamenta.

Segundo o coordenador do curso de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Antônio Jorge Ramalho da Rocha, é muito difícil que o Talibã assuma a mesma postura de 20 anos atrás. "Eles hoje têm mais maturidade, mais recursos e mais consciência da necessidade de se apresentar ao mundo como um grupo de poder com o qual se pode dialogar e negociar em termos razoáveis. A maioria dos vizinhos tem interesse na estabilidade que eles podem produzir na região e estará disposta a colaborar, desde que eles não adotem posturas extremistas e absurdas que tenham muita visibilidade", afirma. São exatamente esses apoios que podem ajudar o país a se reerguer. "É difícil fazer uma projeção. Mas é possível que a China dê apoio ao governo e também o Paquistão, que já é um parceiro, o que facilitaria a reestruturação", avalia Yann Duzert, professor dos MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV) e autor do livro Negociação Internacional.

O grupo tem prometido que garantirá direitos das mulheres e que quem desejar sair do país, e possuir condições legais para isso, poderá ir. No início deste mês, o aeroporto comercial de Cabul voltou a ser reaberto para voos domésticos e para receber ajuda humanitária. Porém, o mestre em relações internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) Igor Sabino diz que já há relatos de que violações de direitos humanos estão ocorrendo. "Em termos de direitos humanos, se assemelha bastante quando o Talibã esteve no poder, já tem relatos de mulheres serem estupradas e mortas, minorias religiosas sendo perseguidas. Nesse sentido está sendo um pouco semelhante, apesar do discurso moderador. Porém, o grupo tem novos desafios que eles não tinham quando estavam no poder pela primeira vez. Eles recebiam financiamento do Paquistão e Arábia Saudita. Hoje, eles estão procurando pela China, Turquia para ver se conseguem esse apoio financeiro, porque a única fonte de renda deles é o tráfico de drogas", explica.

Além disso, Felipe Cordeiro ressalta que a possibilidade de um corredor humanitário também é incerto porque o governo não terá interesse que haja uma saída em massa do país. "Existe o temor de uma drenagem de capital humano que pudesse criar problemas. Eles têm interesses em manter uma imagem de que não é malquisto, porém se eles impedem as pessoas de saírem eles inviabilizam o reconhecimento do governo", avalia.

O medo do terrorismo

Nesses 20 anos que se passaram desde o ataque às Torres Gêmeas, os Estados Unidos gastaram, em média, US$ 8 trilhões de dólares na chamada Guerra ao Terror. A invasão ao Afeganistão, que ocorreu meses depois do atentado, foi motivada pelo Talibã dar suporte à Al-Qaeda. No entanto, as associações combatidas pelo país continuam vivas e fortes. Prova disso é o retorno do Talibã ao poder.

Uma das condições colocadas pelos Estados Unidos para que o país retirasse as tropas do Afeganistão era de que o país não desse abrigo para a Al-Qaeda. No entanto, de acordo com Yann, é muito possível que essa parte do acordo não seja cumprida. "Eles sempre tiveram o Afeganistão como refúgio, e a relação com o Talibã é estratégica", explica. “Apesar do acordo com o governo Trump estabelecer que o grupos terroristas não fizessem ataques a partir do território do Afeganistão, os vínculos históricos são fortes. É difícil imaginar que esses laços vão se romper. Se não tiver um crescimento desses grupos, há uma consolidação”, avalia Felipe Cordeiro.

soldado do Talibã em Cabul
soldado do Talibã em Cabul (foto: Aamir QURESHI / AFP)

Antônio Jorge, destaca, no entanto, que apesar da proximidade, eles só se unem quando há algum interesse em comum. "Há alguma possibilidade de cooperação, mas nunca houve propriamente uma aliança. Eles compartilham algumas visões de mundo, mas têm agendas muito distintas. Se perceberem que podem avançá-las mediante alguma cooperação ad hoc, não hesitarão em promovê-la. Mas ambos o fariam com quaisquer outros grupos de poder locais", explica.

Igor Sabino também lembra que o Talibã protegeu a Al-Qaeda por medo do grupo. "Eles fazem parte do islã político, que tem essa visão de impor uma certa interpretação da sharia na população. Mas a Al-Qaeda e o Talibã tinham objetivos de aplicar essa sharia em escala mundial. Em 2001 o Talibã ficou em uma encruzilhada, ou eles sediam a pressão da Al-Qaeda ou as pressões dos Estados Unidos, só que eles não achavam que os Estados Unidos invadiriam o país", afirma.

Além disso, nesse cenário, é possível que outros grupos terroristas como o Estado Islâmico possam ganhar força. "Outros grupos radicais tendem a olhar para o país como oásis, então, potencialmente eles poderiam abrigar outras associações. Com o Estado Islâmico, a relação é conflituosa. Apesar deles não serem um número significativo eles podem manter ataques terroristas o que vai minando a condição do Talibã de governar", afirma Felipe.

Com poucos dias de novo governo, Cabul já experimentou um atentado terrorista orquestrado pelo grupo. Ao menos 200 pessoas morreram no aeroporto da cidade depois de um ataque de um homem-bomba em agosto.

Este é exatamente um dos desafios para que o Talibã consiga manter um governo no país. "O Estado Islâmico foi derrotado na Síria e no Iraque então ele está procurando novas bases de atuação, então esse também é um dos desafios para o Talibã ficar no poder. Os EUA até cogitam a possibilidade de cooperar com o Talibã para combater o Estado Islâmico”, explica Igor Sabino.

O fracasso da missão

Se tem algo que se pode concluir disso tudo é que nessa guerra não tem vencedor. O Afeganistão é um país devastado por mais de 40 anos de conflitos. Só nos 20 anos de invasão dos Estados Unidos mais de 38.480 pessoas morreram no país. Se somados os mortos no Iraque e no Paquistão, a Guerra ao Terror matou mais de 500 mil pessoas, segundo relatório do Instituto Watson de Assuntos Internacionais e Públicos, da Universidade de Brown.

Entre os erros dos Estados Unidos na empreitada estão o de não terem feito nada para estruturar um Estado e não ter um objetivo claro. A lei que autorizava a invasão de países que tivessem relação com o 11 de setembro não especificava o que eles fariam lá. "Era uma tentativa de neutralizar os terroristas e evoluiu para essa missão que não foi um sucesso. Eles não conseguiram segurar o avanço do Talibã. Os erros foram mudar de missão ao longo do caminho e ter ficado tanto tempo”, avalia Yann.

A invasão ao Afeganistão aconteceu logo depois de atentados de 11 de setembro. A alegação foi de que o Talibã estava dando abrigo para Osama Bin Laden. O terrorista só foi capturado 10 anos depois, em 2011, no Paquistão. Antônio Jorge avalia que a missão como um todo foi um fracasso. "A Guerra contra o Terror, assim como a Guerra contra as Drogas, foi um grande erro. Desde o início defendo este argumento. Os Estados Unidos perderam a oportunidade de concentrar posições globais em torno de uma agenda de prosperidade, como fizeram ao final da Segunda Guerra Mundial, com sabedoria, projetando através de estruturas multilaterais seus interesses”, afirma. "Ao cabo, esses 20 anos produziram ganhos para setores específicos da sociedade e da economia dos EUA ao preço de sua liderança global. Houve mais erros, de vários tipos, que acertos", completa.

Apesar dos Estados Unidos terem conseguido retirar o Talibã do poder em Cabul, o grupo continuou existindo no Afeganistão e no comando de várias províncias do país. Segundo Felipe Cordeiro, alguns aspectos ajudam a entender como isso foi possível. "No começo, eles perderam muita a força, mas o fato deles terem o apoio do governo do Paquistão ajudou eles a se reorganizarem. Um segundo elemento é que a intervenção norte-americana não foi acompanhada de investimentos no país. São 40 anos de guerra. A comunidade internacional tinha como responsabilidade investir massivamente para dar perspectiva de vida para essas pessoas", explica.

Para ele, o grande erro dos Estados Unidos não foi sair do país, foi a de como foi feita essa saída. "A comunidade norte-americana apoiava essa decisão do fim dessas guerras infinitas. Porém, quando ficou claro que o Talibã teria essa possibilidade de assumir o poder, me parece que o governo Biden deveria ter recuado e não manter essa data que era mais uma questão simbólica para encerrar um ciclo e ter uma vitória em termos de imagem”, afirma. "Um dos grandes problemas é que não estava claro quais eram os objetivos dos Estados Unidos no Afeganistão e a gente foi vendo uma série de decisões erradas sendo tomadas ao longo das administrações. É complicado avaliar se houve algo positivo, diante da quantidade de civis que morreram nessa guerra", completa Igor.

Antônio Jorge avalia que esse novo capítulo da história é uma perda para o Ocidente e esse novo rearranjo da Ásia Central pode levar a novos conflitos. "Em certo sentido, a vitória do Talibã materializa, cruamente, a derrota das ideias que pareciam ter conquistado o mundo ao final da Guerra Fria. É uma grande derrota para o Ocidente, nesse sentido", avalia.

Um dos grandes desafios agora, segundo Igor Sabino, é exatamente saber como o Ocidente deve se portar. "O desafio é saber o que Ocidente pode fazer para ajudar essas minorias, já que uma intervenção militar se mostrou falha. Esses 20 anos não foram suficientes nem para levar os valores ocidentais e muito menos para trazer segurança para essas pessoas."

O desafio humanitário

Com a volta do Talibã ao poder, a angústia tomou de conta de muitas pessoas que temem por suas vidas se continuarem no país. O desespero acompanhado pelo mundo no aeroporto de Cabul reflete o temor que pessoas que trabalharam para o governo dos Estados Unidos e muitas mulheres, LGBTs e outras minorias sentem de como as coisas podem ser daqui para a frente. Ao menos 18 mil pessoas saíram de avião de Cabul desde que o Talibã tomou a capital, de acordo com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Os dados só salientam uma situação que já era crítica. Em 2020, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), o Afeganistão já era o terceiro país com maior número de pessoas refugiadas, somando 2,6 milhões de pessoas que tiveram que buscar proteção internacional — atrás apenas da Síria e da Venezuela.

Refugiados do Afeganistão
Refugiados do Afeganistão (foto: CB )

A situação desses refugiados, segundo Yann, deve ser uma preocupação do mundo inteiro, pois quando eles não são bem integrados os problemas humanitários podem ser ainda maiores. "Alguns com formações técnicas poderão achar empregos onde falta mão de obra e se integrar à sociedade de forma mais fácil. Por outro lado tem o risco de estereótipos negativos e muitos não se integram e acabam indo para delinquência. Por isso é importante integrar e trabalhar a opinião pública", afirma.

campo de refugiados afegãos na Alemanha
campo de refugiados afegãos na Alemanha (foto: Olivier DOULIERY / POOL / AFP)

Igor Sabino destaca que caso algo não seja feito o mundo corre o risco de enfrentar algo parecido com o que aconteceu na Síria, em 2015, quando o alto número de refugiados de origem do país foram obrigados a começarem a se deslocar para países europeus por meio do Mar Mediterrâneo, de forma precária e com embarcações inseguras. "A gente já tinha um número muito grande de refugiados afegãos pelo mundo e esse processo de interação tem sido complicado. O desafio é saber como lidar com os refugiados. É preciso que eles consigam chegar de maneira legal, sem precisar recorrer a grupos terroristas e contrabandistas. Você não pode dizer, 'Estamos abrindo as portas', mas sem dar uma maneira de que ele chegue até o país de destino. Até porque o Paquistão e o Irã não aguentam receber mais refugiados. E a situação no futuro pode se tornar bem pior, a exemplo da Síria que os países do Oriente Médio ficaram sobrecarregados, então para a gente não ter uma nova crise como a de 2015 é importante que a atuação comece nesse exato momento. Esses países tiveram um papel direito nessa crise, então eles têm essa responsabilidade", ressalta.

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