Atenção: Esta reportagem contém conteúdo que pode ser perturbador para alguns leitores.
Uma mudança em uma lei no Estado de Nova York permitiu a abertura de mais de 9 mil processos por abuso infantil — incluindo casos contra o príncipe Andrew, Bob Dylan e padres católicos de alto escalão — que anteriormente estavam impedidos por uma regra estadual que determinava a prescrição de casos.
A prescrição (statute of limitations, em inglês) acontece quando uma pessoa perde o direito de processar outra porque se passou tempo demais desde o suposto delito.
Tom Andriola tinha 25 anos, estava na beira do cânion Bryce, no Estado de Utah, e cogitava pular para sua morte.
Já havia se passado 14 anos desde que o irmão adotivo mais velho de Andriola abusara sexualmente dele, mas a memória do trauma ainda estava viva. Lá, na beira do cânion, no isolamento do parque, ele contou o caso para sua esposa — a primeira pessoa a quem ele confidenciou seu segredo.
- Apple vai checar iPhones à distância para verificar imagens de abuso sexual infantil
- A obscura história da escola para crianças indígenas no Canadá onde foram encontradas 160 tumbas ocultas
- O chocante caso de centenas de crianças abusadas secretamente em abrigos de Londres
"Eu realmente pensava que, se eu revelasse alguma coisa sobre isso a alguém, ele viria e me mataria", lembra Andriola.
Algumas semanas antes, o mesmo irmão havia os visitado, ficando um dia a mais do que o planejado. Algo durante aquela viagem desencadeou lembranças do abuso, deixando Andriola ansioso e impaciente para que seu irmão fosse embora.
Por muitos anos depois daquilo, ele não falou mais a ninguém sobre o caso.
Mas como o abuso aconteceu há muito tempo, o irmão nunca foi responsabilizado. No momento em que Andriola estava pronto para divulgar publicamente sua história, o tempo hábil para ele processar seu irmão havia expirado, segundo a lei de prescrição do Estado de Nova York, onde o abuso ocorreu.
Embora seu irmão tivesse sido condenado por molestar outro menino, Andriola não foi autorizado a testemunhar em seu julgamento.
"Nunca recebi um reconhecimento e um pedido de desculpas. A única prestação de contas que houve foi que ele foi pego com outra pessoa", disse ele.
Bob Dylan e príncipe Andrew
Agora, graças a uma mudança na lei estadual, pessoas como Andriola podem ter uma chance melhor de conseguir justiça. A Lei das Vítimas Infantis (CVA, ou Child Victims Act, em inglês) de Nova York suspendeu por dois anos a lei de prescrição nos casos de abuso infantil — permitindo que vítimas entrem com ações civis.
A lei, aprovada em 2019, deu prazo de até 14 de agosto de 2021 para as vítimas entrarem com processos. Nesse prazo, mais de 9,2 mil casos foram protocolados. Entre os réus estão o príncipe real britânico Andrew e o cantor Bob Dylan — ambos negam as acusações.
Dylan está sendo processado por uma mulher que alega ter sido abusada sexualmente por ele em 1965, quando ela tinha 12 anos. Segundo o processo judicial, Dylan teria "se aproveitado de seu status de músico para dar (a ela) álcool e drogas e abusar dela sexualmente múltiplas vezes", também com ameaça de violência física.
A mulher, que hoje tem 68 anos e mora no Estado americano de Connecticut, é identificada apenas pelas iniciais JC. O processo afirma que o abuso ocorreu no apartamento de Dylan no Hotel Chelsea, em Nova York, durante um período de seis semanas, entre abril e maio de 1965.
Um porta-voz do cantor disse à BBC que "essa alegação de 56 anos atrás é falsa e será combatida vigorosamente".
No caso do príncipe Andrew, filho da rainha Elizabeth 2ª, uma advogada americana alega ter sido levada ao Reino Unido aos 17 anos para ter relação sexual com o príncipe. Virginia Giuffre, que também moveu processos contra o criminoso sexual condenado Jeffrey Epstein, afirma que foi abusada sexualmente pelo príncipe Andrew em Londres e Nova York.
O príncipe Andrew nega as acusações.
'Porção muito pequena'
Marci Hamilton, presidente-executiva da Child USA, uma organização sem fins lucrativos que trabalha contra o abuso infantil, disse que as quase 10 mil reclamações ainda representam apenas "uma porção muito pequena" do que se acredita ser a verdadeira escala no Estado de Nova York.
Alguns dados sugerem que cerca de uma em cada cinco meninas e um em cada 13 meninos são abusados sexualmente nos EUA — "isso é 15-20% da população", diz Hamilton.
Estudos descobriram que cerca de um terço das vítimas falam sobre o abuso sexual sofrido antes de chegar a idade adulta. Mas outro terço o faz mais tarde na vida — a idade média nos EUA é de 52 anos. O restante não revela nada.
O medo — de retaliação, de não serem acreditados — é central, assim como a vergonha, com algumas vítimas acreditando que são culpadas pelo abuso que sofreram.
Também pode haver confusão na cabeça da vítima sobre o que aconteceu.
As crianças podem não reconhecer imediatamente como abuso ou estupro o que lhes aconteceu, muitas vezes nas mãos de um adulto de confiança.
A casa paroquial da Igreja Católica de Santa Cecília, na cidade de Nova York, era maior do que David Ferrick, então com 10 anos, imaginava que seria.
Um padre de sua escola católica estava lhe dando uma tour do local. Ferrick, agora com 52 anos, pediu para falar reservadamente com o padre a pedido de sua mãe, que pensava que o menino precisava de conselhos paternais.
O padre era a escolha mais óbvia: ele era "amigo de todo mundo", disse Ferrick — o padre legal que tocava Beatles e levava os meninos aos jogos de basquete da escola.
Ferrick relembra o encontro. O padre pediu a ele que fossem para o quarto para ter mais privacidade. O ar abafado da tarde de verão havia tornado o lugar sufocante.
"Vamos tirar nossas camisas", Ferrick lembra de ouvir o padre dizendo, antes de sugerir que "descansassem um pouco".
"Vou tirar minhas calças também, está muito quente", teria dito o padre. "Você deveria fazer o mesmo."
O garoto de 10 anos achou que era um pedido estranho. Mas ele confiava no padre.
De acordo com Ferrick, o padre então o fez se deitar ao lado dele na cama — para uma soneca à tarde, antes de conversarem.
"Ele estava atrás de mim, me abraçando de conchinha", diz Ferrick. "Eu achei que era estranho — mas que ele realmente me amava, porque ele é padre."
"Comecei a notá-lo mexendo na cintura da minha cueca, puxando-a e depois rolando-a para baixo. Eu fazia tudo o que podia para fingir que estava dormindo. Aos 10 anos, não conseguia processar o que estava acontecendo."
O padre é agora um dos 24 clérigos nomeados por 27 querelantes em uma ação civil de Nova York, movida graças à nova lei.
O homem, que foi acusado de abuso por vários ex-coroinhas, negou todas as acusações, mas não conseguimos contatá-lo. Ele foi afastado da paróquia em 2004 e expulso do sacerdócio em 2006. Ele está listado na Diocese de Brooklyn entre os ex-membros do clero denunciados por abuso sexual de menores de idade.
Por 20 anos, Ferrick não contou a ninguém o que acontecera. Àquela altura, a janela legal para processar o padre havia se fechado.
Antes da lei CVA, as vítimas de abuso sexual infantil em Nova York tinham até seu 21º aniversário — três anos depois de se tornarem adultas perante o Estado — para entrar com ações civis.
Agora, por causa da nova lei, Ferrick finalmente terá a oportunidade de contar a um tribunal o que aconteceu.
"Quando soube que o prazo de prescrição havia sido estendido, fiquei muito animado", disse ele. Ferrick agora está servindo como testemunha no caso contra o ex-padre.
Entre os casos de maior visibilidade está um processo contra a Arquidiocese de Nova York por suposto abuso sexual cometido por Theodore McCarrick, o ex-cardeal católico que foi expulso do sacerdócio em 2019. Ele é a autoridade católica de mais alto escalão a enfrentar acusações de abuso sexual nos USA.
O ex-clérigo, de 91 anos, foi condenado pelo Vaticano por ter abusado sexualmente de um menino na década de 1970, mas até agora vinha conseguindo evitar processos nos EUA, em grande parte por causa da lei de prescrição de Nova York.
Ele agora enfrenta acusações civis em Nova York e Nova Jersey, bem como acusações criminais em Massachusetts por abusar sexualmente de um adolescente na década de 1970.
A BBC pediu que o ex-cardeal se manifestasse sobre as acusações, mas o pedido foi recusado pelo seu advogado, Barry Coburn.
Os crescentes processos contra o clero levaram as paróquias à ruína financeira. Nos últimos dois anos, quatro das oito dioceses de Nova York pediram falência.
Isso tem motivado grande parte da oposição a lei CVA.
O parlamentar de Nova York Michael Fitzpatrick, um dos três deputados estaduais que se opõem ao CVA, diz que a legislação é uma alteração deliberada dos princípios jurídicos americanos para favorecer advogados que só pensam em dinheiro.
Fitzpatrick, um católico praticante cuja própria diocese declarou falência em 2020 em meio a centenas de acusações de abusos, disse à BBC que o custo era "injusto" para os seguidores da paróquia, cujas contribuições à Igreja estão sendo usadas em batalhas judiciais.
A CVA "criou uma oportunidade para aquelas forças que não gostam da Igreja Católica causarem mal a ela", diz o deputado.
"Houve um problema? Sim, houve", disse Fitzpatrick, quando questionado sobre o abuso sexual por membros do clero. "Mas a Igreja foi em frente e avançou para lidar com o problema."
"O sistema legal não deve ser alterado para satisfazer os caprichos do dia. Como sabemos que todas essas alegações são sinceras ou precisas? Você acha que todas são sinceras? Eu não."
As leis de prescrição para abuso sexual variam amplamente nos EUA. Embora Nova York tenha virado manchete por causa do grande volume de casos, os defensores das vítimas dizem que o Estado não está na vanguarda quando se trata de leis de abuso.
De acordo com a CVA, a prescrição em casos criminais (relacionados a crimes que afetam a sociedade como um todo e levam a punições maiores) para abuso sexual de um menor foi estendida para 28 anos de idade. Para casos civis (casos específicos de um indivíduo contra outro indivíduo ou organização, com penas menores), o limite agora se estende para 55 anos.
Mas em Estados como Maine e Vermont, por exemplo, não há limite de tempo para as vítimas de agressão sexual entrarem com processos civis.
Em Dakota do Norte e Oregon, o prazo limite para processos criminais é antes de a vítima completar 40 anos. Em Massachusetts, onde o ex-cardeal McCarrick enfrenta acusações criminais, a prescrição para crimes sexuais é suspensa quando o suposto agressor, se não um residente de Massachusetts, deixa o Estado após o suposto abuso.
Andriola vê a CVA como um modesto primeiro passo na promoção de direitos contra abusos sexuais.
"Não é o suficiente", diz ele. "Simplesmente não deveria haver prescrição para esses casos."
E embora a CVA tenha se tornado lei após o movimento #MeToo, sua aprovação demorou muito para acontecer, dizem os críticos. O projeto foi apresentado pela primeira vez em Nova York em 2006 pela deputada Margaret Markey.
"São as vítimas que mais sofrem como resultado da arcaica lei de prescrições de nosso Estado para esses crimes", Markey disse em 2015, quando pressionou pela aprovação do projeto de lei.
A causa tinha cunho pessoal para Markey. Embora ela não tenha falado sobre isso na assembleia, um de seus filhos lhe disse mais tarde na vida que havia sido abusado sexualmente quando criança por um padre na igreja católica de sua família.
Indenizações em casos civis podem ser fundamentais para apoiar os serviços de ajuda aos sobreviventes.
Vítimas de abuso infantil têm maior probabilidade de sofrer de doenças como depressão, transtorno de estresse pós-traumático, abuso de drogas ou álcool, dizem os especialistas, e tratamentos nos EUA podem ser extremamente caros.
Hamilton, da Child USA, estima o custo médio em cerca de US$ 830 mil (R$ 4,2 milhões) ao longo da vida.
O abuso de Ferrick o deixou com raiva. "É algo em que ainda estou trabalhando", disse ele. E ele se preocupa intensamente com seus filhos — três filhas e dois filhos. Ele diz que "nunca, jamais" deixaria seus próprios filhos terem a liberdade que ele teve, relembrando sua infância independente em Nova York.
"Toda vez que vejo meus filhos indo a qualquer lugar, o primeiro pensamento que vem à minha mente é como eles vão se machucar", disse ele.
Após o sucesso da CVA, defensores como Andriola estão agora voltando seu olhar para a Lei dos Sobreviventes de Adultos (Adult Survivors Act, em inglês).
Essa lei criaria uma janela de um ano para que vítimas adultas de abuso sexual entrem com ações judiciais hoje prescritas. A legislação, que foi aprovada por unanimidade no Senado de Nova York em junho, está paralisada na Assembleia desde janeiro.
Andriola espera que outras leis surjam.
"Quando alguém chega ao seu limite e está pronto para denunciar algum criminoso, a porteira se abre, porque, finalmente, os outros sobreviventes sentem que é seguro denunciar", diz.
Se você foi afetado por abuso sexual ou violência, é possível fazer contato com associações como a Childhood Brasil. Denúncias de crimes podem ser feitos à Polícia Militar no telefone 190 e no Disque Direitos Humanos no número 100. Nos EUA, você pode ligar para a Linha Direta Nacional de Abuso Infantil da Childhelp pelo telefone 1-800-422-4453.
Ilustrações: Angélica Casas
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.