Haniya carrega o nome “esperança”, no idioma dari. Enrolada em uma coberta azul e vermelha, a menina dormia calmamente no Hospital Tang-e-Tayl, onde nasceu às 21h34 de ontem (14h04 em Brasília), em Cabul. O mesmo hospital foi atacado pelo Estado Islâmico em 12 de maio de 2020, quando 16 pessoas morreram, incluindo dois recém-nascidos.
“Minha filha é símbolo de um Afeganistão independente, pois não temos mais tropas estrangeiras no país. A nossa independência depende de aceitarmos o Talibã; é algo difícil”, contou à reportagem o médico Sayed Ibrahim Sadat, 36 anos.
No momento em que Haniya chegava ao mundo, a milícia fundamentalista islâmica celebrava o primeiro dia de uma nova era. A mais de 11 mil quilômetros dali, o presidente dos EUA, Joe Biden, discursava para defender a decisão de retirar as tropas do território afegão depois de 20 anos. “Esta foi a escolha: entre a saída ou a escalada. Não estenderia esta guerra para sempre e não estenderia uma saída para sempre. A guerra acabou”, disse.
Biden declarou que os EUA não tinham mais um “propósito claro” no Afeganistão. “Esta é a decisão correta. Uma decisão sábia. E a melhor decisão para os Estados Unidos”, ressaltou. “Eu me recuso a continuar uma guerra que não mais serve ao interesse nacional vital dos norte-americanos.” O inquilino da Casa Branca assegurou que Washington não abandonará os norte-americanos que não fugiram de Cabul.
“Para os americanos que permanecem ali, não há uma data limite (para o resgate). Continuamos a tirá-los se quiserem sair”, acrescentou. O presidente enviou um recado ao Estado Islâmico Khorasan (ISIS-K), grupo responsável pelo massacre de 170 pessoas em 26 de agosto: “Ainda não terminamos com vocês”.
Pouco antes do pronunciamento do democrata, em entrevista ao Correio, o porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid, afirmou que a saída das tropas do Pentágono foi “um fracasso” (leia Três perguntas para). O último soldado norte-americano, o major-general Chris Donahue, embarcou no avião cargueiro C-17 às 23h59 de segunda-feira (16h29 em Brasília), no Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul.
Horas depois, insurgentes talibãs da guarda de elite “Badri 13”, usando uniforme camuflado e óculos com visão noturna, se apossaram do terminal e entraram nos hangares. Encontraram 73 aeronaves norte-americanas inutilizadas pelos soldados antes da partida — entre elas, helicópteros Chinook. Durante o dia, os extremistas posaram para fotos nas cabines dos aviões e na torre de controle.
Zabihullah e integrantes da cúpula do Talibã foram até o aeroporto e discursaram para os integrantes da “Badri 13”. “Parabéns ao Afeganistão (...) Esta vitória pertence a todos nós. Esta é uma grande lição para outros invasores”, comentou. Em Kandahar, berço do Talibã, milhares de civis saíram às ruas para comemorar.
Apesar de Biden ter classificado a missão de resgate de 120 mil pessoas como “um sucesso extraordinário”, informações divulgadas pela emissora CNN sustentam que os militares dos Estados Unidos negociaram um acordo confidencial com o Talibã. Pelo pacto firmado, os talibãs escoltaram americanos até um “portão secreto” montado por forças especiais do Pentágono no aeroporto.
Opções
Diretor do Centro para Estudos do Afeganistão da Universidade de Nebraska (EUA), o afegão Sher Jan Ahmadzai afirmou que Biden adotou um “discurso com tom pugilista”. “O presidente norte-americano rejeitou as propostas de vários especialistas que o tinham aconselhado a não sair do Afeganistão da maneira como fez. “Sempre existiam mais opções, e isso não significa escalar a guerra. A presença de um pequeno contingente de soldados dos EUA e de terceirizados era vital para a Força Aérea Afegã”, explicou.
Para o especialista, Biden “pintou um quadro em preto e branco”. “Sempre há meio-termo, como a permanência de forças menores, com um Exército afegão moralmente apoiado.”
Ahmadzai classifica a saída das tropas como “uma ação pessimamente executada”. “O maior erro foi a retirada apressada e o desastre que se seguiu, com o colapso do Exército afegão”, avaliou. Ele crê que o fim da guerra, nessas condições, provavelmente terá alto custo para Biden.
“Começou hoje (ontem) uma era repleta de incertezas e de ansiedade sobre o aumento da pobreza, o derretimento da economia e a crise humanitária, que pode levar a uma guerra civil, caso não seja controlada.” Nos próximos dias, a milícia islâmica deverá anunciar o próximo governo. No Vale do Panjshir (nordeste), Ahmad Massoud, filho do famoso comandante antitalibã Ahmad Shah Massoud, impulsiona a FrenteNacional de Resistência para combater os talibãs e destituí-los do poder.
» Trechos do discurso de Biden
Avaliação da missão
“Nenhum país conseguiu algo assim em toda a história. (…) O sucesso extraordinário desta missão se deve ao talento incrível, à coragem, à determinação altruística dos militares americanos, nossos diplomatas e nossos profissionais
de Inteligência.”
Decisão de sair
“Não tínhamos mais um propósito claro no Afeganistão. (...) Esta é a decisão correta.
Uma decisão sábia. E a melhor decisão para os Estados Unidos.”
Escolha de Sofia
“Esta foi a escolha: entre a saída ou a escalada. Não estenderia esta guerra para sempre e não estenderia uma saída para sempre.”
Estado Islâmico Khorasan (ISIS-K)
“Continuaremos lutando contra o terrorismo no Afeganistão e em outros países. E ao ISIS-K: ainda não terminamos com vocês.”
Resgate dos americanos
“Para os americanos que permanecem ali, não há uma data limite. Continuamos comprometidos a tirá-los se quiserem sair.”
» Três perguntas para
Para o Talibã, o que representa a retirada militar dos Estados Unidos do Afeganistão?
A retirada representa que os Estados Unidos falharam e devem aceitar o seu fracasso.
Como vocês veem a resistência armada montada por Ahmad Massoud no Vale do Panjshir?
Estamos prontos para resolver o problema com Ahmad Massoud o mais rápido possível, seja por meios políticos, seja por meios militares decisivos.
Quais as prioridades para o Afeganistão, nesta nova etapa, e que mensagem vocês gostariam de
enviar ao mundo?
Agora que as tropas estrangeiras deixaram o Afeganistão, nossa prioridade é reconstruir o país. Queremos relações diplomáticas melhores e fortes com o mundo. (RC)
» Vozes de Cabul
Fatima Safari, 24 anos, especialista em gestão educacional
“Eu jamais reconhecerei o Talibã, nunca o aceitarei. Espero que Ahmad Massoud e a resistência afegã jamais se rendam ao inimigo de longa data do Afeganistão e aos assassinos de nossos compatriotas. Pedimos às Nações Unidas para que trabalhem com o Afeganistão para eliminarem o Talibã e os terroristas do Daesh (Estado Islâmico).”
Sayed Ibrahim Sadat, 36 anos, médico
“É muito cedo para falarmos sobre o futuro do Afeganistão. Mas está bem claro que os talibãs são pessoas sem educação, que não podem controlar o sistema. Talvez eles apenas controlem a geografia do Afeganistão. O Talibã nem mesmo conhece os fundamentos do sistema de controle do governo.”
Catar faz apelo contra terrorismo
O Catar, base do escritório político do Talibã e destino de muitos refugiados afegãos, pediu à milícia no poder em Cabul que se comprometa a combater o “terrorismo” e a formar um governo “inclusivo”, depois da retirada norte-americana. “Destacamos a importância da cooperação para lutar contra o terrorismo (...) e ressaltamos a importância da cooperação dos talibãs neste âmbito”, disse em Doha o ministro das Relações Exteriores do Catar, Xeque Mohammed bin Abdelrahman Al-Thani. O governo do Catar também desempenhou o papel de mediador no processo de paz entre o governo afegão e os talibãs antes de o Talibã retomar o poder no Afeganistão.
Otan promete não se esquecer de afegãos
O secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Jens Stoltenberg, defendeu que o Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul, permaneça aberto e prometeu não esquecer os que desejam fugir do regime talibã, mas que não conseguiram deixar o país antes da retirada dos últimos soldados americanos do Afeganistão. “Manter o aeroporto de Cabul aberto e em condições de operar é essencial tanto para fazer a ajuda humanitária chegar como para que as pessoas saiam, aquelas que o desejam mas que não conseguiram fazer parte da retirada militar”, declarou Stoltenberg à agência France-Presse. “Todos nos comprometemos a seguir trabalhando duro para a saída dos afegãos. Não os esqueceremos”, completou.
ONU vê risco de catástrofe humanitária
O português António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), admitiu “grave preocupação” com o “aprofundamento da crise humanitária e econômica” no Afeganistão e disse que o país entra em uma nova fase. “Uma catástrofe humanitária se aproxima”, afirmou. “Hoje, 18 milhões de pessoas — quase metade da população do Afeganistão — precisa de assistência humanitária
para sobreviver.
Governo da China cita “nova página”
Depois de criticar a caótica saída de Washington do Afeganistão, a China afirmou que a retirada das tropas norte-americanas após um conflito que durou 20 anos, significa para o país abrir “uma nova página”. Pequim criticou o que classificou como uma retirada militar precipitada e malplanejada, além de ressaltar a disposição de aprofundar “relações amigáveis e cooperativas” com o Talibã.
“O Afeganistão conseguiu se libertar da ocupação militar estrangeira”, destacou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, em sua habitual entrevista coletiva.
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