Novo caminho para a África
A pouco mais de um ano de disputar a reeleição — salvo mudança de rumo por ora impensável —, o presidente Jair Bolsonaro sinalizou a escolha da Guiné Bissau como porta de entrada para a África. Foram as palavras escolhidas pelo capitão para receber o general Umaro Sissoco Embaló, que chegou ao poder pelas urnas, em 2019, já como militar reformado. Ele voou para Brasília em avião da FAB, enviado especialmente para buscar a comitiva.
Pelo apego comum à farda e — dizem os críticos — pelas inclinações autoritárias, Embaló tem sido chamado de “Bolsonaro africano”. O general-presidente encarna um aspecto central das relações bilaterais, no século 21: a cooperação brasileira na formação de oficiais e no equipamento e instrução das forças de segurança. Desde que se tornou independente de Portugal, em 1974, inicialmente em confederação com Cabo Verde, o país africano vive um estado endêmico de instabilidade política, com repetidos golpes militares e o componente corrosivo do narcotráfico.
Rota africana
Os traficantes sul-americanos de cocaína descobriram a Guiné Bissau no contexto da desarticulação dos grandes cartéis colombianos e do controle da vias mais usuais de escoamento da droga pelos mexicanos. Foi quando facções criminosas do Brasil passaram a ocupar maior espaço no negócio, na trilha aberta por Fernandinho Beira-Mar durante sua estada na Colômbia — onde acabou capturado em 2001, numa operação do Exército local contra a guerrilha das Farc.
Composta por uma porção continental e por um conjunto de ilhas de localização estratégica no Atlântico, a ex-colônia portuguesa se apresentou como escala ideal entre o litoral brasileiro e a Europa. Não por acaso, no mesmo período cresceu em escala exponencial a presença de traficantes colombianos no sistema prisional do Norte brasileiro — fenômeno acompanhado pela guerra entre facções brasileiras pelo controle de uma rota alternativa para a Europa a partir do litoral do Nordeste.
Fortaleza, com voos diretos para Praia, a capital de Cabo Verde, vinha sendo ponto de embarque e desembarque de “sacoleiros” dedicados ao contrabando de mercadorias no varejo. O narcotráfico internacional se mimetiza com facilidade em rotas desse tipo, como mostra a experiência da Tríplice Fronteira em Foz do Iguaçu.
Língua pátria
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) deu forma jurídica a laços que se construíram desde a descolonização da África portuguesa, no ocaso do salazarismo. Ainda sob ditadura militar, no governo do general Ernesto Geisel, a diplomacia brasileira viveu um momento peculiar de distanciamento em relação aos EUA e busca de caminhos próprios — o “pragmatismo responsável”, como definido pelo presidente e pelo chanceler Azeredo da Silveira.
Pioneiro no reconhecimento da independência de Angola, em 1974, sob a liderança de um movimento apoiado pela União Soviética e por Cuba, o Brasil encontrou na África lusófona sua porta de entrada para o continente. Negligenciada nas décadas seguintes, a conexão foi reativada com intensidade inédita no período Lula, com Celso Amorim à frente do Itamaraty. Comércio e investimentos deram saltos, impulsionados pela disparada das commodities: os petrodólares choveram em profusão, especialmente em Angola, que contratou vultosas obras de infraestrutura.
Se os chineses eram imbatíveis com o talão de cheques para financiar empreitadas — na definição espirituosa de um embaixador angolano em Brasília, à época —, o Brasil tinha como capital as afinidades históricas e culturais. Em especial, a língua.
Tem que rezar?
Justamente Angola, o mais “brasileiro” dos polos de desenvolvimento na África, se apresenta agora como a esfinge para os planos do governo Bolsonaro para reocupar espaços no continente, onde chineses e indianos investem na conquista de negócios e mercados. O pivô das dificuldades recentes é a Igreja Universal, do bispo Edir Macedo, cujos missionários foram expulsos pelo governo angolano.
O Itamaraty foi duramente questionado pelos líderes da Universal, que esperavam mais empenho na defesa dos missionários por parte de um governo visto como aliado. De olho em 2022 e nos votos evangélicos, fundamentais para a vitória eleitoral de 2018, Bolsonaro indicou para chefiar a embaixada brasileira na África do Sul o ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella, que foi um dos protagonistas da expansão da igreja no continente, nos anos 1990.
Angola, que tem com o vizinho sul-africano um histórico de relações tensas no período do regime racista do apartheid, vê com desconfiança a nomeação de Crivella para retornar como embaixador — em posição privilegiada para retomar a ofensiva da Universal.
Instrui e diverte
A herança de 500 anos de presença africana no Brasil, iniciada com o tráfico de escravos no período colonial, encontrou expressão recente na cultura — em ambas as margens do Atlântico Sul. Em especial, a TV Brasil exibiu, nos anos Lula, o programa Nova África, que descortinou aspectos ignorados do desenvolvimento recente do continente. A série, ainda disponível no YouTube, ajudou a driblar o padrão do noticiário de mídia, onde a África costuma aparecer relacionada a guerra, miséria e calamidades.
Na mesma plataforma, é possível encontrar episódios de uma novela angolana exibida aqui também pela emissora pública. Windek não apenas carrega traços marcantes da teledramaturgia brasileira, como retrata no enredo as ligações econômicas e culturais entre os países. Mais importante, como é usual nas telenovelas, oferece uma panorâmica dos temas em pauta na sociedade: desigualdade econômica, corrupção e até mesmo questões de gênero, como a situação da mulher e da comunidade LGBTQIA+.