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'Terremoto foi anúncio do fim do mundo', diz haitiano que virou engenheiro no Brasil para reconstruir vila onde nasceu

A cidade de Les Cayes foi a mais afetada pelo terremoto de 14 de agosto


O terremoto de 12 de janeiro de 2010, que matou cerca de 200 mil pessoas no Haiti, mudou a vida do engenheiro Jac-Ssone Alerte, de 37 anos.

Na época, ele estudava Odontologia no Brasil, mas, após ver a destruição de parte do seu país, ele tomou uma decisão: mudaria de curso para Engenharia Civil com o propósito de um dia voltar a sua comunidade natal para reconstruí-la e deixá-la mais segura.

Onze anos depois, Alerte estava justamente realizando esse sonho quando, no último sábado (14), um novo tremor, de magnitude 7,2, atingiu o sudoeste da ilha. Até esta sexta-feira, pelo menos 2.000 mortes tinham sido registradas em decorrência do tremor no país.

Sua comunidade natal, Don de l'Amitié, foi novamente destruída - ela também sofreu com as consequências de um furacão, em 2016. Quatro dos 600 moradores morreram no mais recente terremoto, e outra centena ficou ferida.

Segundo Alerte, 90% das casas da vila desabaram. "A situação é caótica, de desesperança. Não há médicos. Não há nenhuma presença do governo. Se a situação já era difícil, o terremoto trouxe o anúncio do fim do mundo", diz ele à BBC News Brasil, por telefone.

Alerte conta que estava plantando algumas árvores na comunidade no momento em que o solo começou a tremer. "A natureza é muito poderosa. Imaginei que o chão fosse se abrir e eu fosse cair lá dentro. Foi a experiência mais assustadora da minha vida", diz.

Depois de uma década vivendo no Brasil, onde se formou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Alerte voltou ao Haiti em outubro de 2019 para assentar os primeiros tijolos de seu sonho de reconstruir Don de l'Amitié.

Sua proposta é erguer uma vila de casas populares robustas, mais resistentes a desastres como terremotos e furacões, e com uma central de energia solar. Para isso, recebe doações e tem apoio financeiro de algumas empresas brasileiras. Na vila, ele engajou futuros moradores na construção, em regime de mutirão. O projeto ganhou o nome de Village Marie, em homenagem a sua mãe, Marie Celiane Alexis, já falecida.

A construção das 15 casas estava indo muito bem, diz, com duas delas já prontas, e outras 12 com as fundações em andamento. Até que o novo terremoto interrompeu os trabalhos.

Arquivo Pessoal
Enormes pedras rolaram das montanhas em direção às estradas próximas a Don de l'Amitié

"Diria que 90% das casas da comunidade ficaram destruídas. As únicas que ficaram inteiras foram as nossas, do Village Marie", diz o engenheiro.

A casa de seu próprio pai, de 80 anos, desabou quando a terra tremeu. "Meu pai conseguiu sair um pouco antes, e se salvou. Mas algumas pessoas morreram soterradas, ou atingidas por pedras enormes", afirma.

No restante do país, o terremoto deixou mais de 30 mil pessoas desalojadas. Boa parte delas tem sobrevivido vagando pelas ruas, em busca de comida e refúgio, dormindo sobre plástico em abrigos improvisados. Chuvas intensas e ventos fortes têm dificultado o complexo trabalho de resgate entre os escombros deixados pelo tremor.

O terremoto ocorreu em um momento político turbulento na ilha caribenha. Em julho, o presidente do país, Jovenel Moïse, foi assassinado por um grupo de sicários colombianos. A morte gerou uma série de protestos violentos no país, em meio à indecisão sobre quem será o sucessor de Moïse. Além disso, regiões do Haiti sofrem com a fome e os serviços de saúde estão entrando em colapso devido à pandemia de covid-19.

Arquivo Pessoal
Segundo o engenheiro, 90% das casas da comunidade ficaram destruídas no terremoto do dia 14 de agosto

Em Don de l'Amitié, a situação de escassez e desalento não é diferente, aponta Alerte. "O terremoto é muito mais do que a terra tremer. As pessoas perderam tudo, as estradas estão cortadas ao meio, não há recursos mínimos", afirma.

Nos últimos dias, o engenheiro e amigos no Brasil criaram uma campanha de doações. Parte do dinheiro arrecadado foi usado para contratar dois médicos para atender os moradores da comunidade. Até então, os feridos (com fraturas e ferimentos abertos) não tinham recebido qualquer tratamento, pois não há médicos nem enfermeiros na região - o poder público também não enviou qualquer auxílio, diz o engenheiro.

"Nessa quinta, conseguimos atender 20% dos feridos da comunidade. Estamos buscando recursos para manter os médicos aqui por pelo menos 15 dias, porque há feridos que precisam continuar com o tratamento. É uma situação desesperadora. Outro problema é que depois de algumas semanas, as pessoas vão esquecer o Haiti de novo e ficaremos ainda mais sem recursos."

As obras do Village Marie foram completamente interrompidas após o terremoto. "Estamos numa situação de emergência. Precisamos de remédios, de abrigos, de cuidados. Ganhei minha vida como presente de Deus, quero usar todo meu esforço e de minha rede pra ajudar as pessoas da comunidade", diz.

'O cara do tijolo'

Alerte cresceu na roça em uma família humilde, o sétimo de 11 filhos, a maioria homens, com apenas duas irmãs. O pai, agricultor, cultivava arroz, fubá, inhame, café e feijão para sustentar a família.

Cabia à mãe, e aos filhos ainda crianças, levar os produtos para vender em feiras. Alerte se lembra de sair de casa no meio da madrugada ao lado dos irmãos, percorrendo quilômetros para levar os frutos das colheitas, em lombo de burro, para vender em feiras a partir das 6h. Mas todos foram para a escola, ao contrário das outras crianças da comunidade.

"Meu pai nunca teve ensino, mas acreditava na educação. Ele conseguiu ver além daquele espaço e nos mandou para estudar. Ele foi um visionário."

Divulgação
Jac-Ssone Alerte se formou em Engenharia Civil para construir a vila o Village Marie, onde cresceu

O jovem concluiu o ensino médio, mas após várias tentativas no vestibular, não conseguiu vaga nas universidades da capital, Porto Príncipe. Então teve ideia de mandar cartas para embaixadas de outros países para tentar a sorte.

E recebeu uma ligação da Embaixada do Brasil com a notícia de que conseguira uma vaga no Programa de Estudante de Convênio para Graduação (PEC-G), um convênio dos ministérios da Educação e das Relações Exteriores para jovens de países em desenvolvimento.

"Fiquei tão maravilhado que quase morri atropelado ao atravessar a rua!", descreve em seu livro (Re)construindo um sonho, que conta sua história. Ele já tinha vontade de estudar Engenharia Civil, mas se satisfez com Odontologia, a possibilidade que apareceu.

Divulgação
O projeto arquitetônico prevê 15 casas construídas com tijolo ecológico, como mostra essa ilustração

Após o terremoto de 2010, quando decidiu mudar de curso, precisou convencer desde o reitor da UFRJ ao embaixador do Haiti no Brasil - que o chamou de "problemático" por insistir tanto em sair do roteiro. Deu certo.

Na graduação em Engenharia Civil, Alerte ficou conhecido como "o cara do tijolo".

Andava para cima e para baixo carregando um tijolo ecológico, falando a quem lhe desse ouvidos sobre a ideia, ainda incipiente, de construir casas populares - resistentes e duráveis - no Haiti. Integrou o centro de pesquisas Projeto Solução Habitacional Simples (SHS), na UFRJ, voltado para a reconstrução de residências populares após situações de desastre.

Quando se formou, em 2017, posou para a tradicional foto de beca com o canudo do diploma em uma mão - e o tijolo na outra.

Ele conta que sua mãe, Marie, lhe deu três conselhos pouco antes de morrer de diabetes, em 2016.

"Um dia ela me ligou e disse: 'Jac, estou morrendo e preciso te dar três lições'. Perguntei por que daquele teatro todo, mas ela disse que a primeira lição era que eu precisava amar tudo o que fazia na vida. Na segunda, ela disse: 'a educação é a única forma de você sair da pobreza, da escuridão'. A terceira lição foi sobre identidade, disse para eu nunca esquecer minha comunidade, nunca esquecer de onde eu venho."

Ele diz que, a partir de então, começou a estruturar o projeto de reconstrução de sua comunidade por meio de casas populares. "Decidi que iria levar conhecimento, tecnologia social, saúde e moradia de qualidade para a vila. Dei o nome da minha mãe ao projeto piloto. E esse é o propósito da minha vida", afirma.


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