Afeganistão

Insurgentes do Talibã tomam o poder e comemoram 'Emirado Islâmico'

Com a chegada de integrantes do movimento fundamentalista a Cabul, o presidente abandona o país para "evitar um banho de sangue". A Embaixada dos EUA e de outras nações foram evacuadas, e os funcionários, enviados ao aeroporto

Após 20 anos da chegada das tropas americanas ao Afeganistão, o Talibã recuperou o controle do país. A conquista é fruto de uma ofensiva que durou 10 dias e que, aos poucos, ocupou distritos importantes da nação até chegar, ontem, à capital. Assim que a operação para a tomada de Cabul teve início, o presidente Ashraf Ghani abandonou o país. O exército dos Estados Unidos, que ocupou a região em uma resposta à recusa dos rebeldes em entregar o então líder da Al-Qaeda, Osama Bin Laden, autor dos atentados realizados no 11 de setembro de 2001, deu início ao processo de retirada do território em julho, por ordens do presidente Joe Biden.

No início da noite afegã, começo da tarde no Brasil, o ex-vice-presidente Abdullah Abdullah anunciou que o presidente Ashraf Ghani havia “deixado” o país. O líder informou que fugiu para “evitar um banho de sangue”, quando o Talibã entrou na capital. Ghani afirmou que “incontáveis patriotas seriam martirizados, e a cidade de Cabul seria destruída” se ele permanecesse. “O Talibã venceu... e agora é responsável pela honra, propriedade e autopreservação de seus compatriotas”, disse Ghani, em um comunicado postado no Facebook.

A partida do chefe de Estado decepcionou outros líderes políticos afegãos. “O ex-presidente deixou o Afeganistão, colocando o povo nesta situação. Ele prestará contas a Deus, e o povo o julgará”, declarou Abdullah, também chefe do Conselho Superior para a Reconciliação Nacional. Ghani não indicou para onde tinha ido, mas o grupo de imprensa afegão Tolo News informou que ele pode ter fugido para o Tadjiquistão.

Os talibãs, que lançaram sua ofensiva em maio, coincidindo com o início da retirada final das tropas americanas e estrangeiras, assumiram o controle de quase todo o país. No início do dia, Zabihullah Mujahid, um porta-voz do Talibã, anunciou no Twitter que o “Emirado Islâmico ordena a todas as suas forças que esperem nas portas de Cabul, não tentem entrar na cidade”. Mais tarde, porém, indicou que eles estavam autorizados a entrar nas áreas da capital abandonadas pelo Exército para manter a ordem.

Na madrugada, imagens de uma rede de televisão afegã mostraram dezenas de insurgentes talibãs no palácio presidencial de Cabul, em comemoração. Apelando aos afegãos a “não se desesperarem”, o ministro do Interior, Abdul Sattar Mirzakwal, assegurou que ocorreria uma “transferência pacífica de poder” para um governo de transição.

Outro porta-voz dos insurgentes, Suhail Shaheen, confirmou à rede de televisão BBC que espera uma transferência pacífica de poder “nos próximos dias”. “Queremos um governo inclusivo (...). O que significa que todos os afegãos farão parte dele”, disse.

Medo e retrocesso
O Talibã assumiu, recentemente, o controle de duas prisões perto da capital, libertando milhares de prisioneiros, e as autoridades temiam que os criminosos perturbassem a ordem pública.

Em Cabul, a população enfrenta o medo. Lojas fecharam, policiais foram vistos trocando uniformes por roupas civis. Os bancos estavam lotados de pessoas querendo sacar dinheiro e as ruas ficaram lotadas de veículos tentando sair da cidade. “Apreciamos o retorno do Talibã ao Afeganistão, mas esperamos que sua chegada traga paz, e não um banho de sangue. Ainda me lembro, de quando era criança, das atrocidades cometidas pelos talibãs”, disse Tariq Nezami, um comerciante de 30 anos.

Quando governaram o país, entre 1996 e 2001, os talibãs impuseram sua versão ultrarrigorosa da lei islâmica. As mulheres eram proibidas de sair sem um acompanhante masculino e de trabalhar, e as meninas de ir à escola. As mulheres acusadas de adultério eram açoitadas e apedrejadas.

O grupo radical tenta transmitir uma imagem mais moderada hoje, e tem prometido que respeitará os direitos humanos, especialmente os das mulheres, de acordo com os “valores islâmicos”. Mas, nas áreas recém-conquistadas, já foram acusados de muitas atrocidades: assassinato de civis, decapitações, sequestro de adolescentes para casá-las à força.

A ativista Malala Yousafzai manifestou preocupação. “Assistimos em completo choque enquanto o Talibã assume o controle (...). Estou profundamente preocupada com mulheres, minorias e defensores dos direitos humanos. Poderes globais, regionais e locais devem pedir um cessar-fogo imediato, fornecer ajuda humanitária urgente e proteger refugiados e civis”, escreveu a ganhadora do Nobel da Paz. Ela ficou conhecida por defender a educação das mulheres no Paquistão, quando, em 2013, foi baleada por talibãs.

 


Entenda o caso

Estudantes de religião
Em 1994, o movimento do Talibã (“estudantes de religião”) apareceu no Afeganistão, um país devastado pela guerra contra os soviéticos (1979-1989). O grupo era liderado pelo misterioso mulá Mohamad Omar, que morreu em 2003. O mulá Akhtar Mansur o sucedeu e foi assassinado em 2016. Atualmente, o Talibã é liderado por Haibatullah Akhundzada, enquanto o mulá Abdul Ghani Baradar, cofundador do movimento, chefia a ala política.

Ascensão
Os talibãs prometeram restaurar a ordem e a justiça, e cresceram rapidamente, graças ao apoio do Paquistão e à aprovação tácita dos Estados Unidos. Em outubro de 1994, tomaram Kandahar, a antiga capital real, com pouca ou nenhuma luta. Em 27 de setembro de 1996, tomaram Cabul, expulsaram o presidente Burhanuddin Rabbani e executaram publicamente o ex-presidente comunista Najibullah. O terror marcou a ocupação dos insurgentes.

Queda
Após os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, perpetrados pela Al-Qaeda, e a recusa do regime Talibã em entregar Bin Laden, Washington e seus aliados da Otan lançaram uma ampla operação militar no país, em 7 de outubro do mesmo ano. Em 6 de dezembro, o regime do Talibã no Afeganistão caiu. Seus líderes fugiram, junto com os da Al-Qaeda, para o sul e leste do país e também para o Paquistão. Os conflitos com soldados americanos, que permaneceram na região com o apoio da Otan, mantiveram-se.

Negociações frustradas
Em julho de 2015, o Paquistão sediou as primeiras discussões diretas, apoiadas por Washington e Pequim, entre o governo afegão e o Talibã. Mas o diálogo não avançou. Em meados de 2018, os americanos, liderados por Donald Trump, e o Talibã iniciaram negociações silenciosas em Doha, que foram interrompidas várias vezes após ataques a tropas americanas. Em 29 de fevereiro de 2020, Washington assinou um acordo histórico com o Talibã, que previa a retirada de soldados estrangeiros em troca de garantias de segurança e a abertura de negociações entre os insurgentes e o governo afegão.

Retirada dos EUA e ofensiva Talibã
Em abril deste ano, Joe Biden anunciou o retorno de todas as tropas americanas que estavam no Afeganistão. Em 6 de julho de 2021, os militares dos EUA informaram que sua retirada estava “mais de 90% concluída”. O Talibã, que lançou sua ofensiva em maio, chegou ontem a Cabul, tendo tomado o controle de quase todo o país sem encontrar muita resistência.

 

Diplomatas deixam o país às pressas

O presidente americano, Joe Biden, enviou seis mil militares ao aeroporto de Cabul para evacuar diplomatas americanos e civis afegãos que cooperaram com os EUA e que temem por suas vidas. O secretário de Estado, Antony Blinken, anunciou que os funcionários da embaixada na capital afegã foram levados às pressas para o aeroporto. “Por esse motivo, o presidente enviou numerosos militares”, explicou à rede de televisão ABC.

O Pentágono estima o número total de pessoas a serem retiradas em cerca de 30 mil. Biden defendeu sua decisão de pôr um fim a 20 anos de guerra, a mais longa da história dos Estados Unidos. “Eu sou o quarto presidente a governar com uma presença militar americana no Afeganistão. Eu não quero e não vou repassar esta guerra para um quinto presidente”, declarou, ontem. Em 2020, o então presidente Donald Trump tentou um acordo com os radicais, para a saída gradual do exército americano em troca de garantias, mas as negociações foram interrompidas após a troca de governo.

Em um comunicado, Trump afirmou que o seu sucessor deveria renunciar. “É hora do desacreditado Joe Biden renunciar por permitir o que aconteceu no Afeganistão, mas também pelo aumento vertiginoso da covid, o desastre na fronteira, a supressão de nossa independência energética e a paralisia de nossa economia”, escreveu. Embora Trump tenha supervisionado as infrutíferas negociações com o Talibã, ele culpa seu sucessor pelo desastre militar. “O que Joe Biden fez com o Afeganistão é mítico. Será uma das maiores derrotas da história americana”, zombou.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, exortou os ocidentais a adotarem “uma posição comum” contra o Talibã “para evitar que o Afeganistão se torne um terreno fértil para o terrorismo”. Tanto o Reino Unido quanto outros países europeus também iniciaram a retirada dos funcionários diplomáticos. As autoridades dinamarquesas, alemãs e canadenses anunciaram que todos os seus expatriados foram transferidos para o aeroporto de Cabul.

A Noruega, que administra a pasta do Afeganistão no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), junto com a Estônia, pediu uma “reunião urgente” do Conselho. Mas a Rússia declarou que não planeja esvaziar sua embaixada e informou que também trabalha para organizar uma reunião urgente do Conselho de Segurança da ONU. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), por sua vez, estimou que é “mais urgente do que nunca” resolver a crise no Afeganistão. “Apoiamos os esforços dos afegãos para encontrar uma solução política para o conflito”, disse um funcionário da Otan à AFP.

António Guterres, secretário-geral da ONU, pediu moderação aos talibãs após o anúncio da tomada de Cabul. O líder da organização internacional, em um comunicado à imprensa disse estar “particularmente preocupado com o futuro das mulheres e meninas, cujos direitos conquistados a duras penas devem ser protegidos”. O Conselho de Segurança da ONU deve se reunir hoje para discutir a situação no Afeganistão.