Em meados do ano, Aidan (nome fictício) decidiu que queria matar a cadela da família. Ele atraiu o animal para trás do sofá de casa com uma salsicha e colocou as mãos sobre sua focinheira e ao redor de seu pescoço. "A coisa mais maluca é que ele, na verdade, ama o cachorro e a mim mais do que qualquer outra pessoa", diz a mãe de Aidan, Hazel (nome também fictício).
"Mas somos nós dois que ele justamente tem como alvo mais frequente, e às vezes ele machuca (a cadela) para ver como eu vou reagir."
Aidan dá chutes e bate, e antes costumava morder. Diz a Hazel que a odeia e quer que ela morra, e que vai conseguir uma arma para atirar nela. Já tentou empurrá-la da escada e descobriu pontos cegos na visão da mãe (que é deficiente visual), de modo que consegue atirar objetos na direção dela sem que ela perceba.
"É um comportamento abusivo, de bullying", desabafa Hazel. "Sinto que estou numa relação de violência doméstica. Você diz que se o seu marido te bater, vai largá-lo, mas como vai fazer isso com seu filho? Você é ao mesmo tempo o protetor e a vítima da criança."
A maioria dos pais nunca terá de se preocupar em ser atacada por uma criança violenta, mas, quando isso acontece, surge um dilema: ao mesmo tempo em que não podem deixar o filho à própria sorte, eles temem que buscar ajuda gere repercussões para o futuro da criança. Pesquisas indicam que esse problema é ocultado e mais comum do que se imagina.
No caso de Hazel, todas as facas da casa ficam trancadas longe do alcance de Aidan desde que ele pegou uma delas e foi atrás de um membro da família. Ele também já recorreu a outros objetos pontiagudos, como tesouras e cortadores de unha. "Tudo leva à violência", lamenta a mãe.
"Ele é interessado em violência e vê violência em qualquer situação. Não podemos assistir a programas infantis porque ele gosta de reencenar qualquer pedacinho que contenha violência."
Acessos de violência
Aidan foi adotado por Hazel e seu marido aos 4 anos de idade, e ela diz que desde então convive com seus acessos de violência, embora achasse que fossem passar com o tempo.
Aos 5 anos, ele fez com que uma professora da escola fosse hospitalizada duas vezes — a primeira delas ao chutá-la no rosto, quando ela se agachou para pegar um objeto que ele havia jogado. A equipe da escola foi treinada para conter Aidan de modo seguro quando ele tinha acessos de violência, às vezes por quase uma hora.
Hazel lembra da primeira vez que o viu depois de uma dessas contenções. "Ele estava sentado num sofá suado, tremendo — foi terrível", conta. "Sentei e abracei meus joelhos, em posição fetal."
Hazel se questiona hoje a respeito das técnicas de contenção usadas na escola, embora não saiba ao certo que outra maneira haveria para lidar com os acessos de violência do filho. "Deve ter sido traumatizante para ele, mas sei como ele era violento", afirma. "Eu via os hematomas nas assistentes de professoras, e não sei que outro modo elas teriam para se manterem seguras."
A escola criou uma sala acolchoada que virou um espaço seguro para levar Aidan quando ele colocava a si mesmo ou outros em perigo. O problema é que "ele passou a ser levado para lá todos os dias", conta Hazel. "E ficava tão nervoso que quebrou o vidro reforçado da porta três vezes." Até que a escola disse que não dava mais conta de cuidar de Aidan.
Milhares de casos por ano
Em 2010, pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, fizeram a primeira análise de que se tem conhecimento sobre dados de violência de crianças contra os pais no Reino Unido, e identificou 1,9 mil registros em Londres durante um período de 12 meses.
A líder do projeto, Rachel Condry, que é professora de Criminologia, estima que, em território britânico, haja milhares de casos anualmente, a maioria dos quais nunca será registrado oficialmente. "É um problema oculto — muitos pais sentem que não podem levar o caso à polícia, ou não recebem nenhuma ajuda ou não encontram nenhum serviço (público adequado)", diz ela.
Condry conta ter ouvido de muitos pais que eles convivem por anos com a violência antes de denunciar o ocorrido a autoridades — e só fazem isso quando realmente se sentem em perigo. "Eles ficam muito preocupados, e com razão, quanto a criminalizar seus filhos e quanto às consequências."
Até o estudo de Condry, havia poucas pesquisas sobre esse tipo de violência — ou até mesmo consciência sobre sua existência. "Não constava em nenhum website, nenhuma política governamental — não havia menções a isso em lugar algum", diz.
"Mas quando eu falava com pessoas que atendem crianças e famílias em todos os tipos de áreas (britânicas), essas pessoas me contavam se deparar com casos do tipo o tempo todo. Era um silêncio muito interessante."
"Eles (pais) sentem uma vergonha muito grande", diz Helen Bonnick, ex-assistente social que escreveu um livro sobre a violência entre filhos e pais. "Se você é um pai ou mãe, seu papel é criar a criança para se tornar um membro responsável da sociedade e um ser humano amoroso. Quando isso dá errado, as pessoas sentem que fracassaram. Não querem falar a respeito. E como ninguém fala a respeito, a pessoa sente ser a única vivendo aquilo."
Assim como o abuso doméstico e a violência conjugal, a violência praticada pelos filhos contra os pais afeta pessoas de todas as classes sociais, ricos e pobres, e seria errado supor que acontece apenas quando há crianças que ficaram em orfanatos.
Na verdade, Michelle John, da instituição Parental Education Growth Support, especializada na violência de filhos contra os pais, diz que sua organização ajuda mais famílias biológicas do que adotivas.
Assim como acontece na família de Hazel, é mais provável que as mães sejam os alvos. "As mulheres têm muito mais probabilidade de serem vítimas de violência doméstica de todos os tipos, e esse é o caso aqui também", diz Rachel Condry. "Embora aconteça com os pais, a violência de filhos contra mãe é a forma mais comum."
Agora, nenhuma escola local aceita Aidan — todas as unidades especializadas o rejeitaram ou o expulsaram. A mais próxima que o aceitou fica a meia hora de carro e também não é capaz de atender às suas necessidades complexas. "Eles estão contendo ele, mas nada está sendo resolvido", diz Hazel. "O garoto ainda está lutando."
Academicamente, ele já está três ou quatro anos atrasado em relação às outras crianças da mesma idade, embora sua caligrafia seja bonita. Hazel pagou por sessões de treinamento para aprender técnicas que ela pode usar para diminuir o comportamento violento de Aidan, para evitar ser ferida. Uma tática é segurar uma grande almofada do sofá para evitar que Aidan seja capaz de machucá-la.
"Na primeira vez, ele pegou (a almofada) da minha mão e me atingiu com ela", lembra Hazel, "então pensei: 'Ok, preciso segurar com mais força'. Na segunda vez, funcionou muito bem — consegui colocá-la entre nós, e ele ficava socando e chutando, tentando contornar, mas não conseguia."
Hazel destaca que seu filho não é mau, mas age assim por causa de traumas que aconteceram em seu passado — e não é culpa dele. "Mesmo que pareça que ele é um agressor, ele não é — ele não consegue evitar", diz ela. "Ele é, na verdade, um menino de natureza doce — é adorável e engraçado, e nós nos amamos."
Mas a tensão gerada por tudo isso a forçou a largar o emprego. Sua saúde piorou — ela teve herpes repetidamente e pneumonia mais de uma vez no ano passado, e agora toma antidepressivos. Seu relacionamento com o marido também foi prejudicado.
"Quando percebemos que havia um problema e que as coisas estavam muito difíceis, basicamente sentimos que havíamos cometido um erro e não tínhamos conseguido lidar com isso", diz ela. "Mas dizer isso em voz alta significa que você tem que fazer algo, então nenhum de nós disse isso em voz alta. Basicamente, não nos falamos por cerca de seis meses."
Quando há um problema?
O comportamento de uma criança se torna problemático quando é controlador, ameaçador, intimidador ou perigoso. Alguns sinais a serem observados são:
- Você muda seu comportamento para evitar confrontos com seu filho;
- Você teme por sua segurança ou pela segurança de outros membros da família;
- A criança está roubando ou danificando os pertences de outros membros da família;
- A criança ameaça você ou outras pessoas;
- A criança ameaça se machucar ou se envolver em comportamento de risco — leve sempre as ameaças de automutilação a sério;
- A criança é cruel com animais de estimação.
Alguns anos atrás, depois de refletir muito, Hazel estava prestes a tomar uma atitude drástica. "Achava o efeito que isso tudo estava tendo na família como um todo muito angustiante, então tomei a decisão de pegar Aidan e ir embora", diz ela.
O marido de Hazel a convenceu a não fazer isso, e, embora agora ela reconheça que provavelmente foi a decisão certa, não ameniza a culpa que sente pelas outras crianças da família. "É a infância deles que colocamos em risco", diz ela.
A família de Hazel deixou de visitar a casa de outras pessoas muito antes da pandemia de Covid-19. Eles não realizam ou vão a grandes eventos familiares. Hazel só vê os próprios pais quando Aidan está na escola, porque eles não conseguem lidar com a presença dele.
E ela não se encontra com seus amigos quando está com Aidan se alguma outra criança também estiver presente. Ela e o marido nunca saem à noite ou passam o fim de semana fora — não há ninguém com quem possam deixar Aidan e que seja capaz de cuidar dele. "É incrivelmente solitário", desabafa Hazel.
Mas ela encontrou grande conforto em uma comunidade online de pais como ela, em fóruns em que as pessoas compartilham histórias e mecanismos de enfrentamento e oferecem apoio moral. Descobrir tantas pessoas vivendo uma situação semelhante foi uma verdadeira surpresa. "Existem muitas, muitas famílias como a minha", diz ela.
Hazel mantém planilhas e está constantemente indo atrás das diferentes agências envolvidas com o passado de Aidan para descobrir quais decisões foram tomadas — ou não. Ela está sempre tentando encontrar a ajuda da qual ele precisa.
A grande esperança da família é colocar Aidan em um internato que visa reabilitar completamente crianças como ele em três anos, permitindo a elas voltar para casa, viver com suas famílias e frequentar escolas normais. "Eu realmente quero colocar ele em uma escola terapêutica, uma que realmente vá ajudá-lo", diz Hazel.
Mas os critérios de admissão são rígidos e complicados, então é um tiro no escuro. Se Aidan não for aceito, Hazel se preocupa em como as coisas podem acabar para ele. "Ele será um parceiro abusivo e terá problemas com a polícia", diz ela. "Ele vai perder o controle e entrar em uma briga — vejo ele na prisão."
Por enquanto, ela continua tentando manter a situação sob controle. Quando Aidan está na escola, ela leva o cachorro para passear e pratica um pouco de mindfulness (atenção plena) para se preparar para o retorno dele.
Ele pode decidir revirar a casa, jogar o conteúdo da fruteira nela e pular do corrimão. Ou, se for uma noite tranquila, Aidan vai ouvir seus audiolivros — as mesmas histórias, repetidamente, seguindo as palavras nas páginas. E quando chegar a hora de dormir, as portas do andar de baixo estarão trancadas para que, se ele se levantar no meio da noite, não incomode o cachorro.
Ilustrações de Owen Gent.
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