Antes de 2001, eles apedrejavam mulheres consideradas adúlteras, exigiam o uso da burca (véu que cobre o corpo dos pés à cabeça), proibiam as afegãs de estudar ou trabalhar e eram implacáveis com os inimigos. Em sua primeira aparição desde o retorno ao poder no Afeganistão, o movimento fundamentalista islâmico Talibã tentou apresentar uma posição moderada.
“Nossas irmãs e mães — como é dito na sharia (lei islâmica), que é o nosso valor —, as mulheres, são parte importante da sociedade. Não haverá violência contra as mulheres, nenhuma discriminação contra mulheres dentro da estrutura da lei islâmica. (…) Nos comprometemos a deixar as mulheres trabalharem de acordo com o respeito aos princípios do Islã”, assegurou Zabihullah Mujahid, porta-voz do Talibã, sem esclarecer quais seriam esses princípios.
Ele também decretou uma anistia geral para todos os funcionários públicos do país. “A guerra acabou, (o líder do Talibã) perdoou todo mundo”, disse.
Pouco antes da entrevista coletiva transmitida para todo o Afeganistão, o mulá Abdul Ghani Baradar, cofundador e número dois do Talibã, desembarcou em Kandahar, procedente do Catar, onde comandava o comitê político do grupo. A TV Al-Jazeera divulgou que outras lideranças da facção estão a caminho do Afeganistão para assumir cargos no governo.
A Casa Branca reconheceu, pela primeira vez, que dialoga com os talibãs. “Nós estamos engajados diplomaticamente, ao mesmo tempo, com aliados em países da região e com as Nações Unidas para tratar da situação no Afeganistão. Estamos em contato com o Talibã para garantir a passagem segura de pessoas para o aeroporto”, afirmou Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional do presidente Joe Biden.
Ele reconheceu que o grupo tomou “boa parte” do armamento norte-americano que estava em mãos das tropas afegãs, incluindo armas de fogo, veículos e helicópteros UH-60 Black Hawk. “Não acreditamos que nos devolvam facilmente.”
Com o Afeganistão perdido para os talibãs, a comunidade internacional busca uma solução política. Em conversa por telefone, Biden e o premiê britânico, Boris Johnson, acordaram a realização, na próxima semana, de uma cúpula virtual de líderes do G7 — o grupo dos sete países mais industrializados do mundo (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) e União Europeia — para discutir uma estratégia comum para o Afeganistão.
Professora de relações internacionais da ESPM-SP, Denilde Holzhacker afirmou ao Correio que, apesar da investida de relações-públicas do Talibã, os relatos recebidos pelas organizações internacionais e a ativistas em defesa das mulheres põem em dúvida essa tentativa do grupo de incorporar um discurso moderado. “Ao colocar que seguirá a sharia de forma muito estrita, o Talibã indica que as mulheres serão um dos alvos, não exatamente como ocorreu entre 1996 e 2001, mas com limitações e restrições de participação na sociedade”, comentou.
“A preocupação é se elas poderão trabalhar em todas as áreas, se terão permissão para estarem nas escolas. Por outro lado, o Talibã teve alterações em sua estrutura. Pode ser que o discurso moderado prevaleça nas capitais provinciais, mas não nas cidades menores.”
Paz
Em Cabul, o clima é de apreensão e desconfiança. Há 10 dias, a ex-ministra e ex-parlamentar afegã Elay Ershad retornou à capital, depois de uma viagem de turismo de um mês pela França e pela Alemanha. Uma semana depois, foi surpreendida com a volta do Talibã ao poder. “Não me arrependo. Amo meu país e meu povo”, comentou.
“Para mim e para a maioria dos afegãos, a paz é prioridade. Se tivermos paz, a educação e os direitos das mulheres virão em segundo lugar”, disse ao Correio. Ela admitiu que começou a confiar no Talibã após ver mulheres caminhando pelas ruas. “Hoje (ontem), algumas jovens até protestaram nas ruas, exigindo direito ao trabalho e à educação. Alguns talibãs estavam lá. Essas coisas dão esperança. È um bom começo”, desabafou.
O jornalista Abdurazaq Habibi, gerente de conteúdo online do Grupo de Mídia Eslah, assistiu pessoalmente à entrevista de Zabihullah Mujahid e contou à reportagem que viu três mulheres dentro da sala, no Centro de Informação e Mídia do Governo do Afeganistão. Ele admitiu que o Talibã parece tentar passar uma imagem de moderação.
“Os talibãs procuram estar comprometidos com os direitos humanos. O grupo tem medo de isolamento do mundo. O Afeganistão precisa da comunidade internacional. Sem esse compromisso com os direitos humanos, o país ficará isolado, e o Talibã quer evitar isso”, explicou Abdurazaq ao Correio. Ao ser questionado se acredita no discurso talibã, ele respondeu: “Isso caberá ao futuro; os afegãos não creem em ninguém, a menos até que provem seus discursos de forma prática”.
» Vozes afegãs
“Não posso confiar nem nos senhores da guerra nem no Talibã. Eles falam com as armas. Os talibãs baniram as lições de artes e de cultura das escolas do país. Não creio em nada do que dizem. Eles enfatizam a sharia (lei islâmica), a qual tem restrições às mulheres.”
Negeen Kargar, 40 anos, química afegã, moradora de Londres desde 2006
“O Talibã afirmou ter mudado. Temos visto mudanças. Vimos mulheres nas ruas. O povo espera as decisões sobre a liberdade de imprensa, sobre as mulheres e sobre direitos de grupos étnicos. Também que partidos políticos sejam incluídos no novo governo.”
Abdurazaq Habibi, jornalista, morador de Cabul
» Depoimento
Um brasileiro no front contra o Talibã
» Alexandre Danieli
“Eu me alistei como fuzileiro naval dos EUA em 2008. Fui para a guerra no Afeganistão e lá fiquei por oito meses, entre 2010 e 2011. Não me sinto traído pela volta do Talibã, mas triste. Agora, todos os não muçulmanos podem se sentir ameaçados. O retorno do grupo ao poder é um perigo mundial. Todo o talibã crê que aqui é o inferno e que somente irá ao céu, para ganhar as sete virgens, se matar um não-muçulmano. Lá, encontrei uma célula terrorista que desejava atacar uma procissão de Nossa Senhora Aparecida, no Brasil. O Afeganistão vai se tornar centro do terrorismo.
O Talibã voltou ao poder por causa da corrupção. Eu estive lá em ano de eleições. Infelizmente, havia compra de votos, influência familiar... Parecido com o Brasil. Os corruptos venderam o país ao Talibã. Fui ferido algumas vezes em combate. Em uma delas, eu era o atirador. Estava sobre um MRAP (veículo tático leve) quando houve uma explosão. Quebrei costela, joelho e calcanhar. Fiquei em coma por 12 dias, em 2011.”
Ex-fuzileiro naval, 38 anos, catarinense naturalizado norte-americano, mora há 19 anos nos Estados Unidos
Fuga do inferno
A foto mostra mais de 600 afegãos — mulheres, homens, crianças e idosos — amontoados dentro de um enorme avião militar dos Estados Unidos, durante a dramática evacuação de pessoas horas depois de Cabul cair nas mãos do Talibã, no domingo. A imagem, que viralizou, foi tomada no interior de um avião C-17 de transporte da Força Aérea dos Estados Unidos. Foi feita e divulgada pelo site de informação militar Defense One.
Os afegãos, espremidos no domingo à noite no “ventre” do gigantesco cargueiro, fazem parte daqueles que estavam autorizados a serem retirados do país pelas autoridades americanas, segundo este site. No total, havia 640 afegãos a bordo, segundo fontes militares dos Estados Unidos.
No entanto, o avião não estava previsto para voar com tantos passageiros, afirmou um militar à Defense One. Muitos deles subiram desesperadamente no avião pela rampa traseira do C-17. Em sua configuração habitual, um C-17 transporta 100 soldados com todo o seu equipamento militar.
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