Cabul, Afeganistão, agosto de 2021: a universitária Aisha Khurram relata que estudantes e professoras estão se despedindo em uma das principais universidades do país, sem saber se poderão voltar para lá ou se rever.
Vale de Swat, Paquistão, janeiro de 2009: Malala Yousafzai, então com 11 anos, escreve em um blog, com um pseudônimo, que ela se despediu de sua escola e amigas "como se não fosse mais voltar".
O que conecta essas trágicas históricas da vida real, de 2009 e 2021, é o grupo extremista Talebã — que, com sua interpretação estrita da sharia, a lei islâmica, se opôs frontalmente nas últimas décadas à educação de mulheres.
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Após a mais recente ofensiva do Talebã no Afeganistão, que dominou a capital Cabul no domingo (15/8), um porta-voz do grupo afirmou que as mulheres seriam respeitadas e que as meninas continuariam tendo acesso à educação.
Entretanto, em entrevista à BBC News, a professora afegã e ativista dos direitos humanos Pashtana Durrani ressalvou que o discurso e a prática do Talebã são distintos, e que o grupo não esclareceu quais direitos das mulheres seriam aceitáveis sob seu regime.
Hoje com 24 anos de idade, um diploma da Universidade de Oxford (Inglaterra) e um prêmio Nobel da Paz, Malala Yousafzai também se manifestou sobre a situação crítica das mulheres na atual ofensiva do Talebã no Afeganistão — vizinho de seu país natal, o Paquistão.
We watch in complete shock as Taliban takes control of Afghanistan. I am deeply worried about women, minorities and human rights advocates. Global, regional and local powers must call for an immediate ceasefire, provide urgent humanitarian aid and protect refugees and civilians.
— Malala (@Malala) August 15, 2021
"Assistimos em completo choque o Talebã tomando o controle do Afeganistão. Estou profundamente preocupada com as mulheres, as minorias e os defensores dos direitos humanos", escreveu a paquistanesa e muçulmana.
A história de Malala mostra que a liberdade e a educação das mulheres sempre foi um forte alvo do Talebã, o que tornou ela própria uma vítima — em 2012, ela foi baleada por combatentes do grupo após se tornar conhecida mundialmente defendendo que meninas como ela tivessem pleno acesso às escolas.
'Fico triste ao olhar meu uniforme'
Malala nasceu em julho de 1997 na cidade de Mingora, no Vale de Swat, ao norte do Paquistão. O Talebã ampliou significativamente seu domínio na região a partir de 2007 e, em janeiro de 2009, foi anunciado o fechamento de todas as escolas de meninas — uma delas dirigida pelo pai de Malala.
Também naquele primeiro mês de 2009, Malala começou a escrever em um blog a pedido da BBC, que procurava alguma estudante para relatar a vida sob o Talebã na região.
Ela começou a escrever em língua urdu (idioma do Paquistão), sob o pseudônimo de Gul Makai — nome de uma heroína do folclore local.
Quando já havia indícios de que o Talebã vetaria a educação feminina, "Gul Makai" contou que suas amigas entraram de férias desanimadas.
"Elas sabiam que, se o Talebã implementasse seu decreto (vetando a educação feminina), elas não poderiam voltar à escola. Eu opino que a escola vai reabrir algum dia, mas, ao ir embora hoje, olhei para o prédio (da escola) como se não fosse mais voltar."
"Hoje é... o último dia antes da ordem do Talebã passar a valer, e minha amiga estava discutindo o dever de casa como se nada além do ordinário estivesse acontecido", contou depois, em 15 de janeiro.
Os relatos continuavam conforme o Talebã ordenava que as mulheres não saíssem de casa, bombardeava escolas e levava diversas famílias a fugirem do vale.
Em sua autobiografia Eu sou Malala - A história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibã (escrito com Christina Lamb e publicado no Brasil pela Companhia das Letras), a jovem contou que sua turma de 27 alunas já havia se reduzido a 10.
As estudantes que ficavam escondiam os uniformes e livros para não serem identificadas como tal por membros do Talebã. Elas também eram obrigadas a usar a burca, uma veste que cobre todo o corpo — e que, segundo escreveu Malala na época, "torna o ato de andar difícil".
Em fevereiro, a aluna dedicada escreveu no blog publicado pela BBC: "Fico triste ao olhar para o meu uniforme, minha mochila e minha caixa de apetrechos para as aulas de geometria. As escolas para meninos reabrirão amanhã. Mas o Talebã baniu as meninas das escolas."
Entre 2009 e 2012, houve breves tréguas nos conflitos e retomadas do Vale de Swat pelo exército paquistanês. Depois de se refugiarem em outras cidades, Malala e sua família retornaram a Mingora, onde ela conseguiu voltou a estudar quando houve um acordo entre o governo e o Talebã.
No período, a identidade de Malala também foi descoberta pela vizinhança e pela imprensa local, tornando-a pouco a pouco mais conhecida pela mídia internacional. Ela já dava entrevistas, fazia discursos e recebia prêmios por sua defesa do direito das mulheres à educação.
A visibilidade, porém, significou também maior vulnerabilidade. Ela e seu pai passaram a receber ameaças — mas sua família acreditava que o Talebã não seria capaz de atacar uma menina como ela.
Em outubro de 2012, provou-se que não: ela foi alvejada na cabeça por um atirador do grupo, enquanto voltava da escola com amigas em um ônibus.
O Talebã declarou que a adolescente foi atacada por "promover a educação secular".
Malala precisou passar por uma delicada cirurgia em um hospital militar do Paquistão e depois foi levada para tratamento na Inglaterra. Sua alta só veio em janeiro de 2013, e a partir daí seu reconhecimento global foi consolidado — levando-a a receber o Nobel da Paz em 2014.
Desde então, a paquistanesa vive na Inglaterra com a família, onde continuou seus estudos. Ela também criou um fundo para apoiar o estudo de meninas ao redor do mundo.
Cotidiano de medo
Na sua autobiografia, Malala conta um episódio que a tocou.
"Quando cruzamos o desfiladeiro Malakand, vi uma mocinha vendendo laranjas. Para cada laranja que vendia, ela fazia uma marquinha com lápis num pedaço de papel, pois não sabia ler nem escrever. Tirei uma foto e jurei que faria tudo o que estivesse a meu alcance para ajudar a educar garotas como ela."
No livro, a jovem critica que, no Paquistão, as mulheres não podem viver sozinhas, precisam ser supervisionadas por seus pais, irmãos ou maridos, e não têm liberdade para estudar ou trabalhar.
"Não há nenhum trecho no corão que obrigue a mulher a depender do homem. Nenhuma mensagem dos céus estabeleceu que toda mulher deve ouvir um homem", escreveu, referindo-se ao livro sagrado do Islã.
Esta cultura machista do país foi levada ao extremo pelo Talebã — Malala traz no livro relatos de mulheres solteiras que foram designadas a casar com membros do grupo e de outras que foram torturadas por andarem publicamente "desacompanhadas", sem um homem por perto.
Para a jovem, além destes ataques à liberdade feminina, era uma ironia o "Talebã querer professoras e médicas mulheres para atender mulheres, mas impedir que as meninas frequentassem a escola para se qualificar para essas atividades".
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