Seria uma terça-feira como outra qualquer. Naquele 4 de agosto de 2020, o engenheiro de redes Shady Rizk, 36 anos trabalhava no Terranet, um provedor de acesso à internet situado na Rua Gemmayzeh, a apenas 300m do porto de Beirute. “Tudo começou às 17h45 (11h45 em Brasília), quando escutamos um barulho alto e um incêndio começou no porto.
Comecei a gravar aquilo com o meu celular, até que uma grande explosão ocorreu às 18h07. Foi o momento mais intenso de minha vida”, contou ao Correio. “Perdi a consciência por alguns segundos e acordei sem visão, com estilhaços nos olhos e muitas dores.”
Shady recebeu 350 pontos, fez várias cirurgias e, de vez em quanto, ainda retira pedaços de vidro do corpo. “Minha visão foi bastante afetada e minha retina mão se recuperou. Fisicamente, estou em processo de cura. Mas, emocionalmente, parece que vai levar muito tempo. Estou traumatizado. Sempre que ouço qualquer barulho imediatamente me lembro de tudo. Sinto dores pelo corpo e arrepios, e choro.”
Um ano depois da explosão que deixou 214 mortos, 6.500 feridos e 300 mil desabrigados, o porto de Beirute segue destruído. “Tudo está como no dia da tragédia. A situação é muito triste porque o país enfrenta a sua maior crise financeira. O Líbano está completamente paralisado, afundando em condições muito difíceis”, relatou à reportagem Angelique Sabounjian, 40 anos, outra sobrevivente, que culpa “cada um dos políticos libaneses” pelo acidente.
“Acredito na justiça e não pararei de exigir isso, mas não tenho esperança nos políticos corruptos”, comentou, ao se recusar a utilizar o termo “acidente”. “Foi assassinato coletivo.” O porto armazenava 2.750t de nitrato de amônio. Nenhum responsável foi levado aos tribunais, e a investigação emperrou por interferência política.
Dona de uma agência de modelos, ela disse se lembrar de tudo. Naquele dia, Angelique trabalhava em uma das mesas da Cafeteria Sip, no bairro de Gemmayzeh, a 2km do porto. “Ouvimos o som de um avião seguido de dois ataques. Entramos em pânico. Peguei minha bolsa para pagar a conta e deixar o local, quando senti a pressão da explosão. Parecia o vento de um tornado soprando dos dois lados. A cafeteria sumiu. Depois que a poeira baixou, vi que os cacos de vidro me empurraram para o lugar onde estava”, disse.
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Ela não sentiu dor quando o vidro lhe atingiu o rosto e os cabelos. “Senti um líquido morno escorrer no lado direito da minha face e soube que estava sangrando intensamente. Procurei o mais próximo hospital. Caminhei por uma hora. Toda a rua estava bloqueada com pedaços de carros, metal, aço, vidro e concreto”, lembra. Os danos nos nervos do lado esquerdo do rosto deixaram a testa e o olho direito em estado permanente de dormência.
Em relatório de 126 páginas, a Human Rights Watch acusou as autoridades libanesas de negligência criminosa, violação do direito à vida e bloqueio da investigação local. “Várias autoridades (...) demonstraram negligência criminosa, segundo a lei libanesa, na gestão do carregamento”, afirma o documento. “As provas sugerem fortemente que algumas autoridades do governo estavam cientes do risco de morte que a presença de nitrato de amônio poderia causar.” (RC)
» Sobreviventes
“Eu culpo o governo do Líbano pela explosão, além dos partidos políticos. Todos sabiam sobre a presença de nitrato de amônio no local e não nos alertaram sobre o perigo representado por essa substância. Espero que um dia haja justiça, mas não acho que a verdade será revelada. Isso porque eles seguem no poder e não acusarão a si mesmos, é óbvio. É por isso que nós, sobreviventes, exigimos um julgamento internacional.”
Shady Rizk, 36 anos, engenheiro de redes, trabalhava a 300m do porto de Beirute. Ficou dois dias internado, mas visita o hospital a cada mês
para retirar pedaços de vidro do corpo
“Ainda estou traumatizada. Pensei que o tempo melhoraria tudo e que o choro desapareceria. No entanto, até a justiça ser feita, nenhum de nós vai se curar completamente dos traumas. O que ocorreu no porto de Beirute, em 4 de agosto de 2020, foi assassinato coletivo, por causa da negligência de cada político. Eles sabiam da presença de nitrato de amônio desde 2013.”
Angelique Sabounjian, 40 anos, proprietária de agência de modelos em Beirute. Estava a cerca de 2km do porto e foi atingida por estilhaços na cabeça
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