Conexão diplomática

Cortesia seletiva com os vizinhos

Uma vez mais, o Brasil se destacou pela ausência do presidente na cerimônia de posse de um governante sul-americano. Jair Bolsonaro preferiu enviar o vice, o general Hamilton Mourão, e foi o único presidente de um país vizinho que não prestigiou o novo colega do Peru, Pedro Castillo. Professor rural e sindicalista, ele foi eleito por um partido que reivindica o marxismo-leninismo e as ideias de José Carlos Mariátegui — teórico peruano que, um século atrás, procurou desenvolver o socialismo europeu na análise de uma sociedade pós-colonial com traços indígenas marcantes.
Antes, Bolsonaro havia se deslocado para cumprimentar pessoalmente Luis Lacalle Pou, do Uruguai, e Guillermo Lasso, do Equador. Ambos podem ser colocados, grosso modo, no mesmo campo direitista em que se situa o presidente brasileiro. Frequentam as mesmas rodas, por assim dizer, o chileno Sebastián Piñera, cujo sucessor será eleito em novembro, e o colombiano Iván Duque, que tenta a reeleição em 2022 — como o próprio Bolsonaro.

Mal me quer

Não escapou aos parceiros e a quem observa a ação do país no campo externo uma certa postura ostensiva do presidente com o sentido de deixar claras as preferências. No caso do Peru, ao menos, o governo brasileiro cumprimentou Castillo prontamente após o anúncio oficial do resultado — ao fim de uma contagem tensa e de um impasse político sobre o qual preferiu não se pronunciar, ao contrário do que fez em situações anteriores.
Mais eloquente foi o tratamento dispensado à Argentina, principal sócio e parceiro na condução do Mercosul. Já na campanha eleitoral por lá, Bolsonaro, então no primeiro ano de mandato, fez questão de tomar partido: qualificou como “desastre” o retorno do peronismo à Casa Rosada, com o presidente Alberto Fernández e a vice Cristina Kirchner. Uma vez eleitos, anunciou explicitamente que não os cumprimentaria.
Foi ainda mais explícita a desfeita a outro vizinho que deu posse a um governo de esquerda. Em novembro de 2020, cerca de um ano após a renúncia de Evo Morales — forçada por um levante de militares e policiais —, o Planalto nem sequer enviou delegação de alto nível à posse de Luis Arce, eleito pelo Movimento ao Socialismo, o partido de Morales.

Pior não fica

Não escapou à atenção da mídia alemã o encontro de 10 dias atrás, quando foi recebida no Planalto a deputada de extrema-direita Beatrix von Storch. Não exatamente pelo peso da parlamentar no Bundestag (Congresso Federal), a hospitalidade de Bolsonaro motivou comentários pela filiação da visitante.
Von Storch traz no sobrenome o selo da nobreza e as pegadas de um avô que integrou o governo nazista de Adolf Hitler e foi condenado por crimes de guerra no Tribunal de Nuremberg. É deputada pela Alternativa para a Alemanha (AfD), partido que conquistou espaço no Bundestag como porta-voz da hostilidade aos imigrantes, em geral, e aos muçulmanos, em particular.
Em artigo na página em português da emissora pública Deutsche Welle, o correspondente Philipp Lichterbeck ressaltou a dificuldade de Bolsonaro para encontrar interlocutores de primeiro escalão na Europa. A título de ilustração, comparou: “É mais ou menos como se Merkel (Angela, a chefe de governo da Alemanha) marcasse reunião com o deputado (e palhaço) brasileiro Tiririca para discutir o futuro da Europa e da América Latina”.

Não tem vácuo

Um caleidoscópio, onde mínimos movimentos desenham uma imagem nova, ilustra com razoável fidelidade o cenário mundial em que o Brasil ocupará, a partir de 2022, uma cadeira não permanente no Conselho de Segurança da ONU. O exemplo da semana é o Afeganistão, que frequenta o noticiário internacional com notável recorrência desde (pelo menos) a ocupação soviética de 1979-1989.
Com a retirada das últimas tropas dos EUA, ao fim de quase duas décadas de ocupação, o filme parece ter retrocedido para 2001. O governo pró-americano colocou o país em toque de recolher, com metade do território sob controle da milícia islâmica Talibã. A mesma que se impôs em meio ao caos do período pós-soviético, nos anos 1990, e governou até ser desalojada na invasão ordenada por George W. Bush em resposta ao 11 de Setembro.
Na relação dialética de rivalidade e convivência com a China, Washington deu sinais externos positivos ao interesse manifestado por Pequim em contribuir mais diretamente para a estabilidade do Afeganistão. Como a extinta União Soviética e a potência hoje dominante, e em certa medida também o vizinho Paquistão, o gigante emergente se apresenta como candidata da vez a ocupar o espaço aberto em um país que teima em frustrar os planos alheios.