Rua Peregrin 5, bairro de Pétion-Ville, na periferia de Porto Príncipe. Por volta de 1h de ontem (2h em Brasília), um comando armado invadiu a residência oficial da Presidência do Haiti. Em vídeos gravados por moradores da região, um dos homens aparece gritando, em inglês, com um megafone: “Operação do DEA (agência antidrogas dos Estados Unidos). Todo mundo deitado”. O presidente haitiano, Jovenel Moïse, 53 anos, e a primeira-dama, Martine Moïse, foram surpreendidos pelos supostos mercenários. Jovenel morreu na hora; Martine ficou ferida, com uma bala fragmentada dentro do corpo, e foi transferida para Miami. O magnicídio é um capítulo a mais em um país sacudido pela instabilidade e pela miséria. No início da noite, as autoridades anunciaram a prisão de suspeitos pelo crime.
O premiê interino, Claude Joseph, decretou “estado de exceção”, impôs a lei marcial, ordenou o fechamento das fronteiras e pediu aos 11,1 milhões de haitianos que mantenham a calma. O Aeroporto Internacional Toussaint Louverture, em Porto Príncipe, teve as operações interrompidas. “O presidente foi assassinado em sua casa por estrangeiros que falavam inglês e espanhol”, declarou Joseph. “Esta morte não ficará impune”, prometeu. Jovenel é o primeiro líder das Américas assassinado desde John F. Kennedy (1963).
O embaixador do Haiti nos EUA, Bocchit Edmond, assegurou a jornalistas que os assassinos são “profissionais” que se passaram por agentes americanos. “Foi um ataque bem planejado. Temos um vídeo e acreditamos que eram mercenários”, anunciou. Um vídeo divulgado nas redes sociais mostra homens fortemente armados diante da residência de Jovenel. Pouco depois, escuta-se uma sequência de tiros. Em várias ocasiões, Jovenel disse em entrevistas que era alvo de um complô para matá-lo. Ele governava o país mais pobre das Américas por decreto, depois do adiamento das eleições legislativas de 2018.
A comunidade internacional reagiu com indignação ao atentado. “Condeno, nos mais fortes termos, o assassinato do presidente Jovenel Moïse. Os autores deste crime devem ser trazidos à Justiça. A ONU continuará a apoiar o governo e o povo haitiano”, afirmou António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, que mantiveram no país a Minustah, missão de estabilização comandada pelo Brasil, entre 2004 e 2019.
O general brasileiro Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e primeiro comandante da Minustah, em 2004, disse à Rádio Bandeirantes que a “eterna turbulência praticamente é o estado normal da política haitiana”.
O Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA) classificou o ataque como “vil” e “atroz” e fez um urgente chamado à uma “rápida investigação internacional” para levar os autores ante a Justiça. Os Estados Unidos pediram ao Haiti que avance com as eleições marcadas para o fim deste ano, por entenderem que a votação pode facilitar uma transferência pacífica de poder.
Morador de Porto Príncipe, o doutor em ciências sociais e professor da Universidade do Estado do Haiti Vogly Nahum Pongnon afirmou ao Correio que a população haitiana está desamparada e em choque. “As avenidas da capital estão vazias. Ninguém imaginava a trágica morte do presidente. Fato similar ocorreu somente três vezes em toda a história do país, explicou o estudioso, que viveu em Brasília entre 2011 e 2017, quando foi aluno da UnB. “A morte de Jovenel ocorreu a sete meses do fim de seu mandato. Claude Joseph decretou luto de 15 dias e ordenou às Forças Armadas que cacem os criminosos. “Parece que não houve resistência dos seguranças presidenciais”, disse.
O advogado e ativista de direitos humanos Antonal Mortime, também morador da capital haitiana, admitiu à reportagem que a situação no país é “muito precária. “Não se sabe quem cometeu o atentado. Minha esposa é presidente do Colégio Eleitoral, responsável por organizar as eleições de 26 de agosto. Ela também sofreu ameaças”, relatou. “Tememos pela segurança de nossa família.”
Saiba Mais
Monocrático
Professora de relações internacionais da ESPM-SP, Denilde Holzhacker explicou ao Correio que o perfil controverso de Jovenel agravou a instabilidade no Haiti. Ela lembra que ele foi eleito dentro da lógica de renovação e de reconstrução nacional, além de transmitir a ideia de que daria novo rumo à política e à sociedade. “Mas o presidente não conseguiu responder, em termos de ações. Jovenel Moïse demonstrou um posicionamento de atuação monocrática, com viés de perseguição aos opositores”, comentou. Segundo ela, o presidente ampliou as mazelas sociais e os problemas de segurança, focados principalmente nas disputas entre gangues. “O assassinato de Jovenel intensifica ainda mais a instabilidade e dificulta uma pacificação do Haiti. As consequências são imprevisíveis em termos de grau de violência na sociedade”, observou.
Ainda segundo Denilde, os desafios dos haitianos serão controlar os grupos violentos e impulsionar a transição de poder. “Haverá muitas pressões internacionais para que o Haiti realize um processo legítimo de mudança de governo, capaz de abarcar todas as forças políticas. A questão imediata é garantir a normalidade e a ordem, para, depois, viabilizar a transição e construir um consenso politico”, avaliou. A estudiosa avalia que a saída, em 2019, das forças da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), comandada pelo Brasil, ampliou a instabilidade ante a incapacidade de reconstruir o país e apresentar resultados concretos.