DROGA: UMA GUERRA FURADA
Ernesto Zedillo foi o presidente mexicano que acabou com aquilo que o peruano Vargas Llosa chamou de a ditadura perfeita. Na história dos variados tipos de governos autoritários da América Latina, o México se destacou por manter o controle civil sobre o militar. Parecia uma democracia. Todavia, o poder civil era exercido a partir do PRI — partido que ganhava eleições arranjadas. Zedillo entrou para a história, pois acabou com o esquema por dentro. Foi eleito pelo PRI — como, até então, só poderia ser — e produziu reformas que permitiram ao partido perder as eleições se assim a população o quisesse. Ao fim de seu mandato, transmitiu o cargo civilizadamente para seu opositor.
Fora da política, Zedillo assumiu uma cátedra na Universidade de Yale, onde trabalha para repensar uma das questões que mais prejudicam a sociedade mexicana: a infindável guerra às drogas que só faz aumentar a corrupção estatal e o poder dos narcotraficantes. É membro da Comissão Global para Política de Drogas, junto a mais de uma dezena de ex-chefes de governo e ganhadores do prêmio Nobel de países de todos os continentes. A comissão promove estudos e políticas para preservar a dignidade das pessoas e salvar vidas ao lidar com a complicada e transnacional questão das drogas.
Por ela passou gente como George Shultz — nada mais nada menos do que um dos mais influentes membros do primeiro escalão do governo Nixon, o qual deu início, justamente, à “Guerra às Drogas”, na década de 1970. Na década seguinte, Shultz foi o secretário de Estado que viu, no governo Reagan, a possibilidade de a Guerra Fria acabar. Faleceu meses atrás aos 100 anos. No fim da vida, usou sua influência para dizer a verdade: que a “guerra às drogas” é uma retumbante furada. Entre outras coisas, porque manter o mercado ilícito resulta em “perversos incentivos econômicos [...] que geram grandes lucros para quem produz e vende drogas, uma renda que é investida para comprar armas, contratar gangues para defender tal comércio, corromper agentes públicos e viciar vulneráveis”, escreveu ele, que foi também secretário do Tesouro. Shultz sabia que era essa a origem da mortandade vivenciada no México e na América Central, e que causava a fuga dessas populações para os EUA.
Se as pessoas são sinceras sobre a importância de se reduzir e se desencorajar o consumo de drogas, o caminho é outro. Dias atrás, o México finalmente deu um passo nesse caminho ao descriminalizar — via Suprema Corte — o uso recreativo da maconha. Se Zedillo se orgulha enormemente de ter estabelecido uma democracia eleitoral no México, seu grande arrependimento foi que, durante sua presidência, a política para drogas foi toda errada, como a praticada pelo Brasil, porque apenas segue a inércia ditada pelo tráfico. A repressão não pensa, ela contrapensa e sempre chega depois do desastre. Hoje, ele está convencido que “não adianta proibir drogas, elas devem ser “reguladas” e o consumo não pode ser criminalizado. “A criminalização só gera violência e corrupção.”
Droga é um problema de saúde pública e privada e deve ser tratado como tal. Promover guerra repressiva é ajudar — seja consciente ou inconscientemente — a bandidagem a prosperar e o Estado a caminhar para a falência moral. Uma “mexicanização” que, infelizmente, tem se alastrado pelo Brasil. Situação tão sem saída que até o México decidiu começar a abandonar.
Em parte porque os EUA resolveram fazer o capitalismo liberal cuidar do problema. O mercado ilícito já se tornou lícito em 16 estados norte-americanos, e a maconha recreativa vem causando um boom econômico nas terras do Tio Sam. O Canadá logo se ajustou e seguiu o caminho de uma saída meio capitalista meio saúde de pública para a questão.
Se os EUA fizeram do problema um negócio lícito que se expande, o Brasil segue gastando dinheiro e ajudando a fazer propaganda de um mercado ilícito. Se a campanha para reduzir o uso do tabaco tornou o cigarro careta, fazer o mesmo com maconha pode funcionar melhor que repressão violenta.
Essa discussão é antiga. Em 1971, Nelson Rodrigues e Alceu Amoroso Lima (Tristão de Atayde) se digladiavam em suas colunas nos jornais do Rio de Janeiro. Alceu apontava que a repressão contra entorpecentes não funcionava e gerava mais problema do que solução, sugerindo que fossem legalizados. Nelson se descabelava dizendo, com razão, que pessoas vulneráveis se autodestroem, num “processo irreversível” causado pelas drogas. O problema é que, hoje, sabe-se — pela experiência de Portugal e de outros países que tratam o tema como questão de saúde — que as chances de se evitar e se reverter o processo são maiores quando tráfico e criminalidade saem da equação.
Paulo Delgado, sociólogo