As 751 sepulturas não têm nomes e estão no local onde funcionava um internato para crianças indígenas administrado pela Igreja Católica — a Escola Residencial de Marieval —, na província de Saskatchewan, no centro-oeste do Canadá. A descoberta ocorre menos de um mês após radares detectarem outros 215 túmulos de crianças em Kamloops, em Colúmbia Britânica (sudoeste), e lança luz sobre abusos e maus-tratos cometidos contra os menores nessas instituições. Cadmus Delorme, chefe da Primeira Nação de Cowessess, esclareceu que as 751 tumbas não se encaixam no perfil de vala comum. De acordo com ele, os túmulos podem ter sido marcados em algum momento, mas “os representantes da Igreja Católica removeram essas lápides”.
Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, divulgou um comunicado sobre a descoberta dos túmulos não identificados e se disse “profundamente entristecido”. “Nenhuma criança jamais deveria ter sido arrancada de sua família e comunidade e privada de sua língua, de sua cultura e de sua identidade. Nenhuma criança deveria ter passado sua infância sujeita à terrível solidão e a abusos”, escreveu o premiê. Segundo ele, a descoberta é “parte de uma tragédia maior”. “Ela é uma lembrança vergonhosa do racismo sistêmico, da discriminação e da injustiça que os povos indígenas enfrentaram — e continuam a enfrentar — neste país. Juntos, devemos reconhecer essa verdade, aprender com o passado e caminhar pelo caminho compartilhado da reconciliação, para que possamos construir um futuro melhor”, acrescentou Trudeau.
O escândalo envolvendo a Escola Residencial de Marieval, na província de Saskatchewan, é apenas a ponta de um iceberg. Denúncias de maus-tratos e de mortes em várias escolas indígenas mantidas pela Igreja Católica no Canadá foram apuradas pela Comissão de Reconciliação e Verdade. Segundo a agência de notícias France-Presse, cerca de 150 mil crianças nativas e mestiças foram recrutadas à força por 139 internatos espalhados pelo território canadense, até a década de 1990. Acabaram separadas da família e alijadas da própria cultura, do idioma e das crenças.
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Urina e sabão
Joseph Julius Maud, 60 anos, tinha apenas 5 quando chegou à Escola Residencial de Pine Creek, em Manitoba, com três irmãos e quatro irmãs, em 1965. Ele contou ao Correio que as freiras o proibiram de falar Ojibway, a língua nativa de seu povo, Skownan. Foram quatro anos de horror. “Elas puxavam minhas orelhas, colocavam sabão na minha boca ou me amarravam”, lembra. “Todos os dias eu sofria alguma punição. Fiquei muito assustado. Chorava e sentia falta de minha família. A cada manhã, urinava na cama. Uma das freiras esfregava meu rosto contra a urina no lençol.” Segundo Maud, 20 crianças morreram em Pine Creek. Ele nunca mais teve notícias de dois familiares, de 7 de 10 anos, que também foram enviados para a instituição. “Creio que milhares de crianças morreram por causa dos abusos, incluindo a inanição. É tudo muito doloroso. Uma experiência muito terrível. Peço humildemente ao Grande Espírito para que conforte meu povo”, lamentou, ao admitir que espera um pedido de desculpas do papa Francisco.
Integrante da etnia Kwakwaka’wakw, Lou-Ann Neel — curadora do Departamento de Coleções Indígenas e de Repatriação do Museu Real da Colúmbia Britânica — disse ao Correio que não se surpreendeu com a informação sobre os 751 túmulos. “Há décadas temos pedido ao governo e à Igreja para que investiguem as mortes de crianças nos internatos. Esses locais não eram escolas. Jamais houve programas de aprendizagem reais oferecidos nessas instituições. Em vez disso, as crianças indígenas foram forçadas a trabalhar para alimentar os padres, freiras e outros contratados para ‘supervisioná-las’”, relatou Neel.
Na década de 1970, ela tinha apenas seis anos quando foi levada para a Escola Residencial de Alberni, mantida pela Igreja Unida do Canadá, em Colúmbia Britânica.
» Vozes de sobreviventes
"Esses ‘internatos’ eram locais que tinham o propósito de nos destruir. Nós morávamos em um prédio da Escola Residencial de Alberni e todos os dias íamos para a escola pública, de ônibus. Depois da escola, voltávamos para aquele buraco do inferno.” Lou-Ann Neel, curadora do Museu Real da Colúmbia Britânica e ex-interna da Escola Residencial de Alberni.
"Eles queriam me matar por ser indígena. Eu e meus irmãos éramos considerados selvagens.
Eles precisavam que nos tornássemos civilizados. Éramos vistos como um fardo para o governo. Queriam que esquecêssemos nossa língua e nosso modo de orar.” Joseph Julius Maud, ex-interno da Escola Residencial de Pine Creek, em Manitoba.