Abalos em série correm os Andes
Depois de Chile, Bolívia, Equador e Colômbia, chegou a vez do Peru na onda de turbulências e inquietações que se sucedem de sul a norte na cordilheira que define a geografia da América do Sul. Quase reencenando a última eleição presidencial, a contagem dos votos terminou praticamente empatada — mas, desta vez, o processo sucessório segue inacabado.
Como há cinco anos, uma desvantagem da ordem de 50 mil votos, correspondente a menos de meio ponto percentual, frustra os planos de Keiko Fujimori, candidata de direita e herdeira política do ex-presidente Alberto Fujimori. Mas, desta vez, o adversário não é outro direitista, como foi o caso de Pedro Pablo Kuczynski, eleito em 2016, mas apeado menos de dois anos depois, em meio a um escândalo de corrupção.
Keiko e seus aliados contestam a vitória apertada de Pedro Castillo, professor rural e sindicalista, que se apresenta como marxista-leninista-mariateguista — referência a José Carlos Mariátegui, que há 100 anos teorizou uma variante 100% original do chamado socialismo científico, assentada no estudo de uma sociedade com profundas raízes indígenas.
Em Lima, sede política e capital desde o período colonial, onde a maioria maciça dos votos foi para o fujimorismo, a Justiça estuda os pedidos de anulação do pleito. Mas a base eleitoral de Castillo marcha para a cidade, decidida a defender a vitória do seu candidato e se fazer ouvir, depois de longo silêncio.
Os “invisíveis”
Não é apenas a esquerda peruana que volta ao jogo político, do qual foi praticamente desalojada por Alberto Fujimori, o pai de Keiko. Vitorioso em 1990, como desconhecido e azarão, o engenheiro de origem japonesa se apresentou como opção para um país nocauteado pela crise econômica, com as principais cidades assediadas pela guerrilha maoísta do Sendero Luminoso. Dois anos depois de eleito, Fujimori aplicou um golpe de Estado, fechou o Congresso e combateu os senderistas sob lei marcial. Venceu, mas ao preço de graves violações dos direitos humanos, pelas quais cumpre pena (em regime domiciliar) até hoje.
Também o Sendero teve origem no interior andino, na região de Ayacucho. Lá, o professor universitário Abimael Guzmán rompeu com o Partido Comunista tradicional e resgatou a ideia de um marxismo com sotaque inca. Vestiu com um poncho a guerrilha rural de Mao Tsé-tung — “o campo cerca as cidades” — e adotou o codinome de Presidente Gonzalo. Acabou preso por Fujinori, renunciou às armas e amarga a prisão perpétua.
Mas foi um escritor de filiação trotskista, Manuel Scorza, quem melhor representou a solidão dos descendentes de Atahualpa em uma sociedade que, em sua sofisticação eurocentrada, se recusava a enxergá-los. Ao longo dos anos 1970, publicou uma série de cinco romances — chamados de “cantares” — que narram uma insurgência armada camponesa/indígena do início da década anterior, na região andina de Cerro de Pasco, contra a invasão de terras por uma mineradora americana. O volume que ganhou maior notoriedade, pela exuberância criativa do realismo mágico, tem o significativo título de ‘Garabombo, o invisível’.
Altiplano
Pedro Castillo e seus apoiadores tratam de repetir, na margem ocidental do Lago Titicaca, a gesta vitoriosa da maioria indígena da vizinha Bolívia, que vem de reconfirmar nas urnas a opção política tomada em 2006. Foi quando Evo Morales tornou-se o primeiro representante das etnias quéchua e aimará a se eleger presidente.
Em 2019, ao fim de um conturbado processo político no qual se reelegeu pela terceira vez, Evo foi forçado a renunciar por um levante de policiais e militares. Do exílio na Argentina, continuou liderando seu partido, o Movimento ao Socialismo, que “desceu” com a militância da vizinha El Alto para a capital, La Paz, garantiu a convocação de nova eleição, em 2020, e retornou ao poder com Luis Arce — o que permitiu a volta do ex-presidente ao país.
Adeus a Pinochet
No Chile, onde começou o ciclo de reviravoltas políticas que estremece os Andes, as atenções se voltam agora para os trabalhos da assembleia eleita para escrever uma nova Constituição. Sepultar a Carta de 1980 será o último passo do longo e penoso caminho seguido desde 1990 para fechar o capítulo da ditadura implantada em 1973 pelo general Augusto Pinochet.
A Constituinte eleita em maio último é filha da onda de protestos sociais que eclodiu em outubro de 2019 contra o presidente direitista Sebastián Piñera. Se o estopim foi um aumento nas tarifas do transporte coletivo, logo a pauta das ruas se estendeu ao conjunto do sistema social e econômico legado pelo pinochetismo.
Com representação igualitária de homens e mulheres e cadeiras reservadas às minorias indígenas, em especial os mapuches, a assembleia tem como marca a presença significativa de candidatos independentes, eleitos fora das listas partidárias. No panorama geral, a esquerda e a centro-esquerda começam os trabalhos em maioria. No horizonte, além da nova Constituição, está a eleição presidencial de novembro, em que desponta como forte candidato o indicado pelo Partido Comunista, Daniel Jadue.