Conexão diplomática

O Itamaraty a descoberto

Atenções e expectativas se voltarão, nas próximas semanas, para o que poderá transparecer, na CPI da Covid, a partir da quebra do sigilo telefônico do ex-chanceler Ernesto Araújo, entre outros alvos de interesse dos senadores. Estarão sob exame a ação da diplomacia brasileira no enfrentamento da pandemia e, muito especialmente, as possíveis interlocuções sobre o assunto entre o presidente Jair Bolsonaro e o então titular do Itamaraty.
Antes mesmo de iniciar a varredura da correspondência do ex-ministro, a comissão de inquérito recebeu documentos sigilosos, inclusive mensagens trocadas por canal diplomático. Eles permitem, de saída, identificar duas linhas de abordagem do problema crucial das vacinas. Em resumo, o Ministério das Relações Exteriores recebeu de postos no exterior, em particular de Washington, informações repetidas sobre o interesse das gigantes farmacêuticas Pfizer e Janssen em fornecer ao Brasil os próprios imunizantes, em larga escala.
Pela ponta das comunicações do ex-chanceler, o interesse central é determinar em qual medida e em que termos o relato enviado pelas embaixadas teve consequência. Em primeiro lugar, no âmbito interno do Itamaraty, mas será inevitável perscrutar o fluxo de informações para o outro lado do Eixo Monumental, em direção ao Planalto. Uma vez constatada, por depoimentos anteriores, a lentidão do governo em responder às ofertas e planejar a imunização em massa na velocidade possível, a quebra do sigilo possibilitará determinar mais concretamente o papel desempenhado pelo presidente e pelo então chanceler.

Pente-fino

Nas entrelinhas dessa incursão dos senadores pela intimidade funcional entre Bolsonaro e Araújo, estarão expostas, ainda que em um terreno determinado, as entranhas do processo pelo qual a política externa do Brasil tem sido traçada e colocada em prática. Será possível, por exemplo, descortinar as linhas de intervenção — se é que houve — seguidas na interface com parceiros como a China, não apenas o primeiro epicentro da doença, mas igualmente um dos pioneiros na pesquisa de vacinas,
O olhar retrospectivo sobre a crise, assim como as reuniões anteriores da CPI, deixou flagrante a ausência de canais fluidos entre Araújo e a diplomacia chinesa. Em mais de um momento, foi a intercessão de outros ministros, de líderes do Congresso e até de um ex-presidente que possibilitou negociar a regularização do fornecimento de doses e insumos da CoronaVac. Nas comunicações do ex-chanceler, os senadores buscarão elementos para identificar o que pode ter ocorrido além de passividade.

Machado de Assis

Ernesto Araújo, que assumiu o comando do Itamaraty sem ter antes chefiado uma embaixada, se vê agora no fio da navalha de uma máxima cunhada por Machado de Assis pela voz do Conselheiro Aires, personagem de ao menos dois romances de sua autoria. Em Esaú e Jacó, o veterano diplomata pontifica: “Descobrir e encobrir — toda a diplomacia está contida nesses dois verbos parentes”.
Escolha de risco

É também nessa “zona de penumbra” entre exposição e sigilo que se desenrola um lance com potencial para causar embaraços ao Planalto e ao Itamaraty, seja no futuro imediato ou a prazo mais longo. Transpirou nos últimos dias que o ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella foi indicado pelo presidente para o posto de embaixador na África do Sul.
Afora as pendências judiciais, desdobramento do processo que o levou à prisão em dezembro, Crivella pode ter pela frente outra natureza de obstáculos. A escolha teria sido motivada não apenas pelas boas relações entre Bolsonaro e o bispo da Igreja Universal. Teria servido como afago ao fundador da denominação neopentecostal, Edir Macedo, aliado de primeira hora. Bases e lideranças da Universal queixaram-se do que consideram inação do Itamaraty no episódio da expulsão de pastores e missionários de Angola, cujo governo vem há anos em rota de colisão com a igreja.
A confirmação do ex-prefeito passa, em primeiro lugar, pela resposta do governo sul-africano ao pedido de agrément, feito sob sigilo diplomático, como de praxe, mas agora de domínio público.
A Universal tem forte presença na África, em particular nos países de língua portuguesa, como Angola e Moçambique — ambos vizinhos da África do Sul. A presença por lá de uma eminência da igreja, que participou de sua expansão na região, nos anos 1990, pode acirrar as disputas com o governo angolano.

Em turnê

Desde este fim de semana, os radares estarão apontados também para a Europa, começando pelo Reino Unido, que recebe desde ontem, os líderes das sete maiores potências econômicas. Joe Biden faz diante do G7 sua estreia no cenário internacional como presidente dos EUA. Leva na bagagem a meta ambiciosa de costurar com os parceiros a doação de 1 bilhão de doses de vacina para países em desenvolvimento, além de comprometê-los com medidas drásticas contra a mudança climática.
Na quarta-feira, Biden vai a Genebra para o primeiro encontro de cúpula com o colega da Rússia, Vladimir Putin. Em campo neutro, os dois devem trocar cartões de visita e colocar as primeiras cartas sobre a mesa da relação bilateral, que vem aos solavancos nos últimos anos.