A violência usada pelas forças armadas de Mianmar, no sudeste asiático, contra oponentes desarmados desde o golpe de fevereiro chocou o mundo; mais de 800 pessoas foram mortas, a maioria por tiros de militares. Mas as mortes sob custódia de dois oficiais da Liga Nacional da Democracia (LND) — o partido liderado por Aung San Suu Kyi — aumentaram o escrutínio sobre as ações militares.
No sábado, 6 de março, a tensão rondava todas as cidades do país.
Três dias antes, elas haviam enfrentado o dia mais violento desde o golpe de fevereiro — com a ONU registrando a morte de 38 pessoas.
O Exército tomou o poder em 1º de fevereiro, após alegar, sem provas, que a eleição anterior que sagrou a vitória da LND havia sido fraudulenta.
Suu Kyi e altos líderes foram colocados em prisão domiciliar, desencadeando ondas de protesto contra os militares.
Nas primeiras três semanas, os militares pareciam inseguros sobre como responder aos protestos.
Mas, no final de fevereiro, eles estavam usando níveis crescentes de força letal. Na primeira semana de março, estava claro que não haveria restrições aos seus atos.
O bairro do centro histórico de Pabedan, no centro de Yangon, com seus becos estreitos entre prédios coloniais em ruínas, já tinha presenciado muitos confrontos.
Naquela semana, ativistas construíram barricadas em algumas ruas para impedir a entrada das forças de segurança e houve vários embates.
Pabedan tem uma população diversificada, com um grande número de residentes muçulmanos e oito mesquitas.
Na eleição geral do ano passado, Sithu Maung, um dos dois únicos candidatos muçulmanos apresentados pela LND, ganhou a vaga no Parlamento representando a cidade.
Seu gerente de campanha era Khin Maung Latt, um veterano ativista da LND que havia se mudado para Pabedan muitos anos antes e vivia com a família de um advogado budista.
Ele era coproprietário de uma empresa de turismo, tinha administrado uma locadora de vídeo e era membro ativo da LDN desde 1988, tornando-se presidente de sua filial local. Ele era conhecido e querido da comunidade.
"Era muito religioso e orava cinco vezes por dia", diz Sithu Muang à BBC, de um esconderijo onde agora está se escondendo dos militares.
"Mas pessoas de todas as religiões o amavam. Ele fez muito pela comunidade, como criar novos espaços verdes para as crianças brincarem. Ele era muito importante para a LND."
Causa de morte desconhecida
Khin Maung Latt estava em casa com sua família adotiva quando a polícia e os soldados chegaram pouco depois das nove horas da noite.
Os soldados foram identificados pelos vizinhos como membros da 77ª Divisão de Infantaria Ligeira, uma unidade conhecida por abusos de direitos humanos.
De acordo com Ko Tun Kyi, amigo de Khin Maung Latt, os soldados estavam na verdade procurando U Maung Maung, um advogado mais graduado na LND e que já havia se escondido.
Em vez disso, eles invadiram a casa de Khin Maung Latt, conta Ko Tun Kyi, e o arrastaram para fora, chutando e batendo nele.
Ko Tun Kyi acredita que Khin Maung Latt foi levado para a prefeitura de Yangon, um dos primeiros prédios de que os militares tomaram o controle após o golpe.
Na manhã seguinte, a família de Khin Maung Latt recebeu um telefonema da polícia dizendo-lhes que viessem buscar seu corpo em um hospital militar no norte de Yangon.
Disseram-lhes que ele havia desmaiado e que deveriam informar às pessoas que ele havia sofrido um ataque cardíaco.
Mas a família insiste que o homem de 58 anos estava bem de saúde e não tinha doenças conhecidas. Dizem que seu corpo apresentava sinais de vários ferimentos e estava coberto por um pano encharcado de sangue.
O corpo foi aberto e costurado no que pode ter sido uma autópsia, mas a família não recebeu nenhum relatório oficial sobre a causa da morte. Ele foi enterrado mais tarde naquele dia em uma cerimônia muçulmana.
A organização americana de direitos humanos Physicians for Human Rights (PHR) examinou as evidências, incluindo fotos do corpo de Khin Maung Latt.
Embora não seja capaz de fazer qualquer avaliação definitiva, a entidade concluiu que a causa da morte dada pelas autoridades militares é implausível: segundo a ONG, Khin Maung Latt foi provavelmente vítima de "homicídio" enquanto estava sob custódia.
Ko Tun Kyi diz acreditar que Khin Maung Latt foi morto de forma proposital. Ele foi detido menos de dez horas antes de sua família ser informada de sua morte; sua morte não teria sido, portanto, o resultado de tortura prolongada.
"Certa vez, fui preso e interrogado, então sei como eles arrancam informações de você. Talvez eles acreditassem que ele era conectado ao Comitê Representante do Pyidaungsu Hluttaw (CRPH), o governo rival apoiado pela oposição", disse ele.
"Talvez eles estivessem tentando obter informações sobre o que a LND está planejando ou onde os ativistas estavam se escondendo?"
Segundo ele, foi a proeminência de Khin Maung Latt na LND local que o tornou um alvo de retaliação militar, embora ele não fosse uma ameaça óbvia para a junta militar.
'Vísceras para fora'
Mas a teoria de que os militares estavam visando o partido de Aung San Suu Kyi ganhou mais peso dois dias depois, com a morte de outro oficial da LND, Zaw Myat Lynn.
Ele era muito mais proeminente no movimento de oposição do que Khin Maung Latt — e seu tratamento parece ter sido muito mais brutal.
Zaw Myat Lynn tinha 46 anos e era diretor de uma nova faculdade no distrito industrial de Shwe Pyi Thar — uma das várias abertas sob o governo da LND.
Ele também foi um ativista dedicado da LND e, logo após o golpe, foi escolhido para ser o representante local do CRPH.
Dias antes de ser capturado, ele postou mensagens emocionantes em sua página do Facebook, pedindo aos moradores que continuassem sua luta revolucionária contra os militares, a quem chamou de "cachorros" e "terroristas".
"Zaw Myat Lynn era uma potência política", diz à BBC um oficial da LND do mesmo município, que agora está escondido e não pode ser identificado.
"Ele era um orador excelente. Ele foi a única pessoa de nosso município que conseguiu unir as pessoas e liderar as manifestações pós-golpe. Foi ele quem convenceu funcionários de vários escritórios do governo a se juntarem ao movimento de desobediência civil."
O funcionário se lembra de ter se juntado a ele e seus alunos em um protesto em 8 de março.
"Ele não parecia nem um pouco preocupado", diz ele. "Ele até se ofereceu para que eu ficasse com ele em sua escola, alegando que era muito perigoso para mim estar fora das ruas."
Naquela noite, Zaw Myat Lynn voltou para a faculdade com alguns de seus alunos. Pouco antes das duas horas da manhã, os soldados arrombaram o portão do colégio.
Os alunos disseram ao professor para escapar escalando a parede do fundo. Sete deles foram presos; na época, ninguém sabia ao certo o que havia acontecido com Zaw Myat Lynn.
Às três horas da tarde, sua esposa, Daw Phyu Phyu Win, recebeu um telefonema de um oficial local em Shwe Pyi Thar dizendo que seu marido estava morto e que ela poderia ir ver o corpo dele — que estava no mesmo hospital militar para onde foi levada a família de Khin Maung Latt.
Eles encontraram com marcas de agressões graves. Sua barriga foi aberta por uma incisão longa e horizontal, e ela disse que suas vísceras estavam do lado de fora.
Ela viu um grande ferimento nas costas. A imprensa estatal oficial informou que ele havia caído de costas em um tubo de aço de cinco centímetros enquanto saía da escola. O governo advertiu que medidas severas seriam tomadas contra qualquer um que fornecesse relatos alternativos de sua morte.
O médico do Physicians for Human Rights que examinou as fotos do cadáver concluiu que a explicação oficial não tinha nenhuma credibilidade.
O corte horizontal na barriga era inconsistente com qualquer incisão de autópsia. O torso também foi cortado verticalmente no que parece ter sido uma autópsia. O enorme hematoma em ambos os lados do torso de Zaw Myat Lynn também era inconsistente com o relato oficial de que ele havia caído durante a fuga.
É muito mais provável que esses ferimentos tenham sido infligidos a ele por seus captores. O médico do PHR não conseguiu tirar conclusões definitivas dos horríveis ferimentos em sua cabeça.
O rosto de Zaw Myat Lynn estava gravemente desfigurado na época de seu funeral. No entanto, o médico do PHR acredita que isso pode ser devido à decomposição.
As autoridades militares só permitiram que sua esposa levasse o corpo embora no dia de seu funeral, e ela levou três dias para providenciar tudo. O corpo parece ter ficado sem refrigeração nesse tempo.
É difícil saber por que esses dois oficiais foram submetidos a uma tortura tão terrível que, de acordo com todas as evidências, parece ter sido o que os matou.
A junta militar não se pronuncia sobre o tratamento brutal aos que se opõem ao golpe.
A BBC pediu ao porta-voz da junta que respondesse ao relatório do PHR, mas até o momento da publicação desta reportagem não havia recebido nenhum retorno.
Um histórico brutal
Os militares têm um histórico de mau tratamento de vítimas — e muitas morrem em decorrência disso.
Corpos são arrastados para fora do local em caminhões militares — normalmente nenhuma tentativa de prestar primeiros socorros é feita a quem ainda pode estar vivo.
Algumas famílias foram impedidas de recuperar os corpos de parentes, que são cremados pelas autoridades militares sem nenhum indício de investigação de sua morte.
A maioria dos corpos é devolvida com sinais de tortura e extenso trabalho de autópsia, mas nenhum relatório confiável ou independente é fornecido para explicar como eles morreram.
A Associação de Assistência aos Presos Políticos em Mianmar, que há muitos anos documenta abusos cometidos pelas forças de segurança, identifica 75 pessoas desaparecidas no tumulto que se seguiu ao golpe, com 23 delas confirmadas como desaparecidas — presume-se que estejam mortas.
Brutalidade e irresponsabilidade sempre foram problemas no tratamento de dissidentes pelas autoridades em Mianmar; mas isso se tornou muito pior desde o golpe.
Nesse caso, nenhum dos dois mortos era uma figura importante na política nacional.
É possível que a decisão de tratá-los dessa forma tenha sido tomada exclusivamente pelas unidades militares que os detiveram, talvez inflamadas por queixas locais ou pessoais, ou talvez apenas no calor do momento. O ódio instigado por políticos também pode ter sido um fator.
As forças de segurança de Mianmar têm sido violentas no tratamento de detidos há décadas e muito raramente são responsabilizadas.
Mas o funcionário da LND acredita que Zaw Myat Lynn foi morto dessa forma para enviar uma mensagem.
"Acredito que eles calcularam que, ao executá-lo de uma maneira tão terrível, iriam provocar medo nas pessoas, fazendo-as recuar."
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