Conexão diplomática

Peças se movem na vizinhança

O cenário regional no qual Jair Bolsonaro tomou posse, em 2019, passa por turbulências e reacomodações de forças que, na somatória, desenham um panorama bem menos favorável — justamente na antessala para a campanha pela reeleição, em 2022. Os acontecimentos das últimas semanas debilitam os dois governantes vizinhos que formaram, com o presidente brasileiro, o triângulo decisivo para neutralizar as iniciativas de integração empreendidas pela esquerda nacionalistas nas décadas anteriores, um movimento cristalizado em siglas como Unasul e Celac.
É no Chile, por várias razões, que se concentram as atenções de alcance mais longo. No último fim de semana, o arco de forças que sustenta o presidente Sebastián Piñera — um espectro que inclui desde a direita pinochetista até segmentos simpáticos a Bolsonaro — sofreu derrota de impacto profundo. Com menos de um terço dos eleitos para a assembleia que redigirá a nova Constituição, o bloco de Piñera não garantiu sequer o poder de veto aos artigos do texto. A esquerda, fortalecida, larga em relativa vantagem na campanha para a eleição presidencial de novembro.
Piñera sucumbiu, desde os meses finais de 2019, a uma onda de protesto social semelhante à que se alastra e se enraíza, nas últimas semanas, na Colômbia. Lá, o alvo imediato foi o projeto de reforma tributária do presidente Iván Duque, direitista de cepa compatível com as dos colegas chileno e brasileiro. Apadrinhado do ex-presidente Álvaro Uribe, paladino da “guerra total” contra a guerrilha das Farc, e avesso ao acordo de paz negociado pelo anfecessor, Juan Manuel Santos, Duque é outro que enfrenta as urnas pela reeleição, no ano que vem — em maio, meses antes de Bolsonaro tentar o segundo mandato.

Fronteira norte

Também na fronteira norte do Brasil, como a Colômbia, o Peru se apresenta como incógnita até mais imediata. Daqui a dois domingos, o país escolhe o novo presidente, em segundo turno, entre dois extremos do confuso leque partidário. De um lado, Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori, célebre por governar sem Legislativo e sob lei marcial. nos anos 1990, para debelar a guerrilha comunista Sendero Luminoso. Do outro, Pedro Castillo, candidato por um partido que se define como marxista-leninista.
Vencedor do primeiro turno, em abril, Castillo largou na frente nas pesquisas sobre o segundo turno, mas vem perdendo terreno. A sondagem mais recente deu a ele 45% das intenções de voto, contra 41% de Keiko. Caso prevaleça, Castillo fará coro com Luis Arce, que vem de recuperar a Bolívia para o partido de Evo Morales — um dos entuasiastas da Unasul, ao lado de Lula, Hugo Chávez e do casal Kirchner, de volta ao poder na Argentina.

Na surdina

Foi com a discrição característica do chanceler Carlos França que o governo brasileiro retornou, sem estardalhaço, às discussões multilaterais sobre a pandemia e o seu enfrentamento. Foi o ministro quem representou o país em uma cúpula remota convocada no âmbito do G20. Entre os chefes de Estado presentes na tela, os presidentes da Argentina e do México — para ficar apenas com os governantes da América Latina.
Fiel ao perfil pragmático, porém leal, o chefe do Itamaraty não se pronunciou sobre a suspensão de patentes para vacinas contra a covid, um dos temas centrais da agenda. A proposta, que já teve o endosso dos EUA e da China, ficou sem o aval do G20. Em sua fala, França citou repetidamente o presidente Jair Bolsonaro.

Deixa disso

No mesmo tom, e com volume comparável, o chanceler rompeu o silêncio mantido em Brasília sobre o conflito entre Israel e o movimento islâmico Hamas. Em praticamente duas semanas de hostilidades, a troca de bombardeios matou 12 civis israelenses e mais de 200 palestinos residentes na Faixa de Gaza, ao menos até o cessar-fogo que entrou em vigor na noite de quinta-feira.
Depois da aproximação ostensiva de Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo com o aliado Benjamin Netanyahu, na primeira metade de mandato, o novo chanceler trata de exercitar algum pragmatismo. Sem alarde, em documento endereçado ao Conselho de Segurança da ONU, pediu a Israel que exerça “máxima contenção”, mas não questionou a posição de Netanyahu. Paralelamente, França convidou os embaixadores dos países árabes a uma conversa sobre a situação.

Candidatura na pista

O depoimento do ex-chanceler Ernesto Araújo à CPI da Covid, na terça-feira passada, foi aguardado entre expectativas de que ele se apresentasse como porta-voz do bolsonarismo no que diz respeito à política externa. Identificado entre os expoentes do que se convencionou chamar de “ala ideológica” ou “olavista” do governo, o diplomata decepcionou quem esperava ouvir no Senado um pré-candidato ao Congresso na eleição de 2022.
Se algum tipo de candidatura desfilou na CPI, foi a de uma congressista cujo nome começa a ser considerado para as Relações Exteriores em um governo pós-Bolsonaro. A senadora Katia Abreu (PP-TO), que preside desde fevereiro a Comissão de Relações Exteriores da casa, foi a inquisidora mais dura de Ernesto Araújo. Vista como principal porta-voz do agronegócio em Brasília, a senadora foi contundente a agressiva na medida para deixar claro que estará presente no debate da política externa, no próximo período.