Gaza dá a medida do recuo do Brasil
Da última vez que Israel e os palestinos de Gaza travaram uma (breve) guerra de bombardeios, há pouco menos de uma década, o Brasil vinha de liderar um movimento diplomático quase unânime na América do Sul e América Latina. A maioria dos governos da região seguia o gesto simbólico adotado por Lula nos últimos dias da presidência, em 2010, e dava à Autoridade Nacional Palestina o reconhecimento como entidade estatal, nos limites territoriais anteriores à guerra áreabe-israelense de 1967 — Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Durante o conflito de 2014, a posição ostensiva da diplomacia brasileira, que julgou desproporcional a resposta israelense, resultou em grave e prolongado mal-estar, dissipado apenas depois que Michel Temer substituiu Dilma Rousseff, em 2016.
Chama a atenção dos observadores, agora, o silêncio observado até o momento pelo Planalto e pelo Itamaraty. Inclusive por conta do alinhamento ostensivo do governo Bolsonaro, desde os primeiros dias, com o premiê israelense, Benjamin Netanyahu. No primeiro ano de mandato, o presidente brasileiro chegou a acenar com a possibilidade de transferir a Embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém — na prática, efetivando o reconhecimento da cidade como capital de Israel, uma situação de fato que a comunidade internacional desautoriza, na sua maioria.
Netanyahu, que foi o governante de maior expressão a prestigiar a posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019, foi também o primeiro a receber o novo presidente brasileiro, fora da vizinhança imediata. Àquela altura, Planalto e Itamaraty faziam eco ao alinhamento ostensivo da Casa Branca de Donald Trump com Israel. Nos pouco mais de dois anos em que ocupou o cargo, o chanceler Ernesto Araújo teve esta como uma das linhas principais para a atuação do país na frente externa.
O perfil discreto mantido até aqui sobre a nova crise entre Israel e palestinos, já com um saldo superior a 100 mortos, se soma a outros indicadores de que o novo chanceler, Carlos França, se concentra de momento em recompor internamente o ministério, que se ressente da atuação pronunciada e ostensiva do antecessor em um viés ideológico que divide (no mínimo) o corpo profissional da diplomacia.
Em cartaz na CPI
A última movimentação mais ostensiva do governo Bolsonaro nesse linha deverá, por sinal, estar entre os assuntos sobre os quais o ex-chanceler será questionado nesta terça-feira, quando prestará depoimento à CPI da Covid. Em março, Ernesto Araújo liderou uma comitiva oficial, reforçada por outros ministros e por parlamentares governistas, em visita a Israel. Objeto de criticas e objeções, inclusive pelo custo elevado, a viagem foi justificada em nome do interesse por um spray anticovid então testado por cientistas israelenses.
Um decreto presidencial colocou sob sigilo, por 15 anos, os telegramas trocados com o goveno israelense em torno da visita. Ontem, porém, o Itamaraty admitiu oficialmente que a empreitada não resultou em qualquer acordo.
Em campanha?
A expectativa pela audiência em que o ex-chanceler será inquirido extrapola os limites da investigação aberta no Senado sobre a atuação do goveno na pandemia. Nas últimas semanas, em círculos bolsonaristas, o nome de Araújo vem sendo mencionado como possível candidato ao Congresso nas eleições de 2022.
Visto como próximo ao “guru” Olavo de Carvalho, o ex-ministro se destacou, já durante a transição, como um dos porta-vozes mais eloquentes da chamada “ala ideológica” do governo. Ao contrário do sucessor, que ilustra o perfil mais discreto da diplomacia, Araújo procurou — e obteve — notoriedade entre os seguidores do presidente pelas declarações repetidas contra o sistema multilateral, ao qual se refere como “globalista”. Foi substituído a contragosto, depois de ter passado por “fritura” na Comissão de Relações Exteriores do Senado — justamente por ter dificultado as relações com a China, fornecedor essencial de vacinas contra a covid.
Olho na vizinhança
Não muito longe do Congresso, fisicamente, mas à margem do noticiário dominado pela CPI, o Itamaraty terá nas próximas semanas atenções voltadas para dois processos eleitorais em vizinhos sul-americanos. Hoje e amanhã, os chilenos escolherão os 155 integrantes da assembleia convocada para redigir uma nova Constituição, destinada a substituir a Carta legada pela ditadura do general Augusto Pinochet.
A Constituinte foi o resultado mais palpável de uma onda de protestos sociais que eclodiu nos últimos meses de 2019 e só perdeu fôlego meses depois, sob impacto direto da pandemia. Nas ruas de Santiago e de outras cidades, os jovens que encabeçaram as manifestações deixaram evidente o descontentamento não apenas com o presidente Sebastián Piñera, um direitista, mas com praticamente toda a representação política convencional. Mais do que a relação de forças entre direita e esquerda, a votação deve redesenhar o sistema partidário, como prévia para a eleição presidencial de novembro e dezembro.
Três semanas mais tarde, será a vez do segundo turno da disputa presidencial no Peru, onde todos os últimos governantes foram investigados ou mesmo condenados por corrupção. O segundo turno coloca frente a frente dois extremos: pela direita, Keiko Fujimori, filha de Alberto Fujimori, que governou com poderes ditatoriais nos anos 1990; pela esquerda, liderando as pesquisas, Pedro Castillo, candidato de um partido que se reivindica marxista-leninista — passadas mais de três décadas da queda do Muro de Berlim.