Estados Unidos

Governo Joe Biden: as políticas à esquerda que põem o presidente em posição inédita na história recente dos EUA

A gestão Biden tem apresentado propostas de reformas tão arrojadas quanto caras para os cofres públicos

Biden discursa no Congresso para marcar seus 100 primeiros dias no cargo; propostas são arrojadas - e caras
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Há um ano, quando Joe Biden recém emergia como o nome do Partido Democrata a enfrentar Donald Trump nas eleições presidenciais de novembro de 2020, seus correligionários não disfarçavam certa falta de entusiasmo.

Político profissional com mais de três décadas no Congresso, Biden era visto como um centrista pragmático, de estilo protocolar e entediante, que teria que ser rebocado pelas alas mais à esquerda do partido para implementar uma agenda progressista em sua gestão.

Pareciam corroborar essa visão tanto o histórico de Biden, que votou a favor da Guerra do Iraque e costumava manter proximidade com parlamentares republicanos repudiados pela base democrata - como o senador Mitch McConnell -, quanto sua negativa de, ainda durante a campanha, endossar propostas como a criação de um sistema de saúde público universal no país, advogada por seu rival nas primárias, o senador Bernie Sanders.

Nas fileiras do partido e entre o eleitorado jovem e progressista dos EUA, o quase octogenário era tomado como um possível presidente tampão, uma figura moderada necessária para pacificar o país após a turbulência social dos anos Trump, uma espécie de ponte para algo mais ousado em termos de políticas públicas democratas, que não viria nos quatro anos de um mandato Biden.

Cheque, creche, matriz energética limpa e mais

Mas os primeiros cem dias do governo Biden sugerem que, para a felicidade da esquerda do partido e preocupação dos direitistas e republicanos, a avaliação estava errada. A gestão Biden tem apresentado propostas de reformas tão arrojadas quanto caras para os cofres públicos.

Biden já colocou em prática um plano de socorro econômico contra os efeitos da pandemia de covid-19 de US$ 1,9 trilhão. Esse é um gasto que, por si só, já superaria a injeção de recursos feita por Franklin Delano Roosevelt, em 1933, ano em que o mandatário iniciava seu pacote de medidas para recuperar os EUA da Grande Depressão, batizado de New Deal.

Parte desses recursos bancou os mais de 160 milhões de cheques de até US$ 1,4 mil que a administração federal já distribuiu entre a população do país.

A projeção é que, como resultado do aporte de dinheiro público, a economia americana cresça 7% neste ano, o maior resultado em quase quatro décadas, após uma contração de 3,5% em 2020, resultado dos efeitos da crise sanitária causada pelo novo coronavírus, que já ceifou a vida de 580 mil pessoas no país.

"Esta é a legislação mais significativa para os trabalhadores que foi aprovada no país em décadas", comemorou o progressista Sanders, conhecido pela verve crítica à esquerda que destina aos democratas. Embora a retomada de empregos em março tenha parecido confirmar o entusiasmo de Sanders, com quase um milhão de postos de emprego criados, o dado de abril decepcionou e ficou apenas em um quarto disso.

O pacote ainda garantiu que Biden entregasse quase o triplo em vacinas que havia prometido em seus cem primeiros dias: há 290 milhões de doses disponíveis em território americano, 230 milhões delas já aplicadas.

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Restaurante em Nova York; plano de Biden colocou em prática socorro econômico de US$ 1,9 trilhão

Na semana passada, em outro movimento progressista histórico, a Casa Branca alterou seu posicionamento na Organização Mundial do Comércio para se colocar a favor da quebra de patentes dos imunizantes contra a covid-19, proposto por Índia e África do Sul.

A postura representa um golpe nos interesses de farmacêuticas americanas, como Pfizer e Moderna, que detêm a propriedade intelectual de algumas vacinas.

O governo americano justificou que, como grande financiador do desenvolvimento e distribuição das doses, tinha direito também a opinar sobre sua reprodução ao redor do mundo e que aumentar o acesso a imunizantes nesse momento era estratégico para o interesse nacional e internacional.

Em outra frente, Biden aliou suas ambiciosas promessas climáticas a um plano de desenvolvimento de infraestrutura impulsionado pelo Estado.

Se aprovado pelo Congresso, seu pacote de investimentos de US$ 2 trilhões destinará recursos para a construção de uma matriz energética limpa no país e para estímulos à substituição de boa parte da atual frota de veículos dos EUA por carros elétricos.

Esses esforços fariam parte do caminho para cumprir a meta anunciada pelo governo de cortar pela metade as emissões americanas de gases do efeito estufa em relação aos níveis de 2005, um objetivo mais ousado do que o estabelecido pelo ex-presidente democrata Barack Obama, de quem Biden foi vice.

Além de desenvolver uma economia verde, o plano de infraestrutura criaria milhões de empregados de nível médio, bem remunerados, para atender à massa de ex-operários americanos que viram seus empregos migrarem para a América Latina ou a Ásia durante o processo de globalização da produção da indústria americana.

E se promete impulsionar o setor de alta tecnologia verde, o governo Biden começa a desidratar a indústria mineradora e petrolífera do país.

Seu governo suspendeu novos arrendamentos para exploração de petróleo e gás em terras e águas federais, o que tem sido interpretado como o passo inicial de um banimento permanente dessas atividades.

Mas os planos de Biden não se concentram apenas em melhorar a infraestrutura física e ambiental do país. O governo quer investir em capital humano.

Suas propostas incluem a destinação de cerca de US$ 1 trilhão para creches, universalização da educação pública para crianças entre três e quatro anos de idade (hoje inexistente na maior parte dos EUA) e gratuidade de dois anos de estudo nas chamadas Community College, faculdades locais - mais baratas e com bem menos prestígio do que as renomadas universidades americanas - que costumam atender alunos dos estratos mais pobres da sociedade.

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Casa Branca alterou seu posicionamento na Organização Mundial do Comércio para se colocar a favor da quebra de patentes das vacinas contra a covid-19

E enquanto o aumento da dívida pública do país será inevitável, ao menos uma parte dos planos deve ser custeada pelo aumento de impostos sobre os mais ricos.

A Casa Branca propõe uma revisão do sistema tributário dos EUA que afete todos aqueles com rendimentos superiores a US$ 400 mil dólares por ano - sejam famílias ou empresas.

A proposta quase dobraria os impostos sobre ganhos de capital (o lucro sobre investimentos) para pessoas que ganhem mais de US$ 1 milhão anualmente. Essa seria a maior taxa de imposto sobre ganhos de investimento desde que a modalidade do imposto foi criada, em 1920.

Além desses três grandes pacotes orçamentários, a gestão Biden tenta pautar no Congresso projetos de lei com profundo impacto em aspectos culturais e sociais do país: o presidente enviou ao Congresso um plano que prevê caminho para a cidadania americana a 11 milhões de migrantes indocumentados, além de uma ampla reforma no sistema migratório dos EUA, tem defendido aumento de restrições ao acesso às armas e tem reconhecido e tentando combater o racismo estrutural, tanto por meio de medidas que ampliem o acesso ao voto entre a população negra quanto propondo reforma da polícia do país.

"Entediante, mas radical"

O ímpeto de Biden parece ter pego de surpresa tanto oposicionistas quanto simpáticos à sua gestão. De um lado, o senador republicano trumpista Ted Cruz qualificou o governo como "entediante, mas radical".

De outro, à agência de notícias econômicas Bloomberg, Dean Baker, o economista sênior do Centro de Pesquisa Econômica e Política, de tendência progressista, afirmou que Biden surpreendeu: "Muitos de nós temíamos que ele seria excessivamente cauteloso, mas ele encampou uma agenda agressiva e ambiciosa e a defendeu bem. Eu o subestimei politicamente".

O ceticismo de que Biden pudesse mudar de modo frontal as posturas que ele próprio defendeu em um passado não tão distante é compreensível.

Uma anedota ilustra bem isso. Entre 2009 e 2011, quando a administração Obama-Biden buscava retomar o crescimento dos EUA após a recessão de 2008, o economista auxiliar de Biden era o progressista Jared Bernstein. Bernstein deixou o governo frustrado com o foco da Casa Branca no que para ele era a "questão econômica errada": o controle do déficit fiscal.

O economista acreditava que era preciso que o Estado gastasse muito mais em um primeiro momento, para permitir um retorno robusto da economia e a retirada gradativa de investimentos públicos do mercado. Perdeu a queda de braço. Dez anos mais tarde, Bernstein está de volta à Casa Branca como um dos principais conselheiros econômicos do presidente. E agora, sua visão sobre a necessidade de gastos polpudos pelo Estado já não é mais minoritária no governo.

Para o cientista político Jonathan Hanson, quem esperava ver em Biden uma reedição da gestão Obama falhou em notar não só uma mudança no ambiente político quanto em reconhecer a maleabilidade inerente aos políticos profissionais.

"Sinto que a pandemia está encerrando a era que começou com o governo Ronald Reagan, em que o governo era considerado o problema e deveria ser reduzido. Por 40 anos, tanto à esquerda quanto à direita, repetiu-se o mantra do corte de gastos públicos e redução de impostos. Mas neste momento, o que as pessoas querem é que o Estado se apresente para resolver o problema, impedir que a economia colapse diante da pandemia", afirmou Hanson à BBC News Brasil.

A mudança de percepção pública sobre a atuação do Estado na economia fica evidente em pesquisas de opinião. No fim de abril, um levantamento nacional feito pela agência Reuters e o Instituto Ipsos mostrou que 65% dos americanos aprovavam o pacote de alívio econômico aos impactos da covid-19, contra 29% que desaprovavam.

Do mesmo modo, o pacote de infraestrutura também conta com simpatia da maioria. O Instituto de Pesquisa da Universidade Monmouth apontou, em 26 de abril, que dois em cada três americanos apoiam o plano de gastos trilionários de Biden bem como o aumento de impostos que será necessário para custeá-lo.

Segundo Hanson, Biden mostrou tino para descobrir a vontade popular e maleabilidade para segui-la, como costumam fazer os políticos profissionais.

Reuters
Se aprovado pelo Congresso, pacote de investimentos de US$ 2 tri destinará recursos para a construção de uma matriz energética limpa e para estímulos à substituição de boa parte da atual frota de veículos dos EUA por carros elétricos

"Acho que talvez as pessoas tenham subestimado Joe Biden como político. Ele é muito capaz de ler a situação política tanto dentro de seu partido quanto nacionalmente. E, isso significa que ele vai mudar de posição com o tempo, sim. Diante dos desafios imensos nos Estados Unidos e no mundo, Biden passou a reconhecer a necessidade de tomar grandes decisões, necessárias para enfrentar essas crises", diz o professor da Universidade de Michigan.

A janela dos dois anos

Embora audaciosa, grande parte da agenda de Biden ainda depende da aprovação do Congresso, no qual a situação não é exatamente confortável. Apenas o pacote de alívio da covid-19 já foi aprovado.

Os democratas sustentam uma maioria mínima no Legislativo, suficiente apenas para aprovar legislações que tenham implicações orçamentárias diretas. Leis ordinárias, no entanto, demandam maioria de três quintos no Senado, o que obriga os democratas a convencerem parte da bancada republicana a apoiar seus projetos.

A construção de legislações bipartidárias, no entanto, tem se mostrado difícil. E embora Biden tenha fundado sua campanha no mote da união nacional e repetido em diferentes ocasiões seu apreço pela composição multipartidária, ele tem deixado claro aos democratas que tentará seguir com os planos mesmo que os republicanos não embarquem.

Isso porque, em apenas dois anos, os americanos voltarão às urnas para renovar - ou não - os mandatos de uma parcela do parlamentares, o que ameaça a já precária maioria do partido do presidente.

"Nos dois últimos governos democratas, tanto Obama quanto Clinton começaram com maioria no Congresso, buscaram a construção de consenso com os republicanos, acabaram bloqueados e, nas eleições do meio de mandato, viram o fim de suas maiorias - e da chance de aprovar boa parte de suas propostas. Assim, perderam a janela de oportunidade dos dois anos que, na prática, os presidentes democratas têm", afirma Janson, em uma explicação institucional para o fato de Biden apresentar uma agenda mais progressista e arrojada que seus antecessores do mesmo partido em tão curto espaço de tempo.

"Biden viu o erro acontecer no governo Clinton, quando estava no Congresso, viu o erro se repetir no governo Obama, quando era vice. E parece agora decidido a encerrar esse ciclo. Ele já avisou que vai usar a legitimidade das urnas para empurrar sua agenda nesse começo, enquanto há condições para isso", resume Hanson.

É provável que, com menores ou maiores alterações, Biden consiga aprovar seus planos de infraestrutura e de investimento em pessoas. Já o futuro de leis como a reforma de migração ou do policiamento seguem como incógnitas. Bandeiras históricas das alas mais à esquerda dos democratas, essas mesmas matérias dependem agora da anuência de uma parte da bancada republicana para ser aprovadas. No limite, serão os republicanos a decidir se elas vão compor ou não o legado do governo Biden.


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