Capitalismo e democracia de Biden
A unidade institucional típica da civilização norte-americana está ancorada no tripé das três grandes ordens de poder e administração de interesses: a ordem econômica pulverizada, a ordem política descentralizada e a ordem militar burocratizada. Todavia, os principais meios de poder com capacidade executiva rápida estão sob a estrutura plantada na Casa Branca. E são suas atividades, decisões e contatos que preservam e aumentam o domínio dos EUA como a maior democracia capitalista do mundo. Os EUA de Biden acordaram para a questão de que a compatibilidade do capitalismo com a democracia é algo que as sociedades constroem com boas regulações promotoras da civilidade e do bem-estar social. E, agora, quem quiser se salvar deve defender saúde e meio ambiente.
Quando Trump misturou liberalismo, populismo e ação política, os EUA sentiram o risco de desorganização social. Não deu outra. Biden chegou aos 100 dias de governo dando alta intensidade às suas ações. Ele é mais experiente e sabe que o aparato político não é extensão mecânica de interesses econômicos ou de fanáticos apoiadores. Nenhum dos dois tem força para substituir o sistema político e o emaranhado de pessoas, instituições e hierarquias envolvidas. Mas, como tudo nos EUA, a vitória de Biden não significa que houve inversão de poder. Ele é continuidade com mudança.
À frente dos EUA, ao governo Biden apareciam três opções: uma era tentar segurar a situação presente (a que vigorou de 1973 até Obama), em que os EUA faziam a política econômica que bem entendiam, estando muito integrados ao mundo. Funciona enquanto a sociedade civil não se rebela e a espinha dorsal do poder não se inclina a favor de mudanças. Nos EUA, a revolta ocorreu em 2016 com ânimos populistas-nacionalistas que acabaram levando Donald Trump ao poder. E, embora derrotado, é difícil voltar com o mau gênio que despertou para dentro da garrafa da normalidade. Por isso, mais exequíveis restam as outras duas opções.
A segunda é tentar se apropriar de algumas agendas populistas/nacionalistas do Trump e acelerar o retorno para o passado que o mundo viveu entre 1945 e 1973, com estados nacionais fortes e menos integrados. Contando com a aposta de que a sociedade civil americana mais ampla é democrata e capaz de criar uma identidade americana mais abrangente, menos compartimentalizada em grupos de stauts e classes sociais, mas igualmente nacionalista. Esse, sim, é um puro “de volta para casa” econômico, que basicamente entrega o que Trump prometeu, só que com uma identidade americana multicultural e não racista.
A terceira é abrir caminho para a experimentação com um maior federalismo global. Ou seja, regras globais básicas de imposto, trabalho, remuneração, bem-estar social, etc. O apoio a um imposto global para as big techs vai nesse caminho. Como, por questões tecnológicas, a globalização só vai aumentar, o plano 2, mesmo na sua versão bem-intencionada, é difícil dar certo do ponto de vista democrático. Democracia como a ideia de igualdade entre as pessoas (uma pessoa, um voto), mas também os valores liberais de proteção das minorias e impedimento de concentração de poderes não se enquadra no apetite concentrador de capital e poder que possuem as empresas de alta tecnologia. A liberdade de oportunidade possibilitada pelas redes sociais delas derivadas são uma válvula de escape, mas precisam de vigilância pública e sofrem controle remoto privado.
O plano 3, de maior federalismo global com sociedade civil forte, é o que nunca foi testado. Afinal, as organizações internacionais dos anos 1970 para cá são mais fachada do que substância — crescem menos do que as grandes empresas e fortunas individuais — e as que funcionam o fazem com base em deficit democrático e estão sujeitas à lei do mais forte. Todavia é cada vez maior a melhor chance para se seguir tendo uma sociedade civil livre, ativa, com economias pujantes e com menos chance de guerra militar ou fiscal. Verdade seja dita de que até poucos anos atrás não havia tecnologia que fizesse o plano 3 exequível. Hoje, as Big Tech, administradas de forma mais transparente e democrática, são parte da solução.
Por fim, em qualquer caminho, o viés ambiental é inevitável e faz parte da equação para modernizar a relação entre capitalismo e democracia. É aí que está a grande oportunidade para o Brasil se situar na alta conversa entre seus dois maiores parceiros comerciais, pois não haverá nova geografia ambiental sem EUA, China e Brasil de acordo. Pena termos um presidente tão desinformado sobre tudo.
PAULO DELGADO, sociólogo