Passava da 1h de 2 de maio de 2011. O executivo Sohaib Athar, então com 34 anos, trabalhava em casa prestando consultoria para um cliente internacional. O silêncio em Abbottabad, cidade situada no noroeste do Paquistão, foi interrompido pelo barulho de helicópteros. “Fiquei incomodado com o ruído da aeronave pairando sobre o meu bairro. Por ser uma cidade militar, helicópteros pousam de vez em quando por aqui. Mas, daquela vez, não foi um som comum. Depois de poucos minutos, um estrondo muito alto sacudiu as vidraças do meu quarto”, relatou ao Correio o paquistanês responsável por informar, por meio do Twitter, a operação secreta. Foi o momento em que um dos helicópteros Black Hawk se espatifou no solo.
A 2km de sua residência, três tiros na cabeça, desferidos pelos Seals (unidade especial da Marinha dos Estados Unidos), selaram o destino do extremista mais procurado do mundo. O então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, acompanhou a missão ao vivo, da Sala de Situação da Casa Branca, acompanhado do vice, Joe Biden, e da cúpula de segurança.
Dez anos após a execução do líder da rede Al-Qaeda, Osama bin Laden se mantém como um ícone do jihadismo e a organização terrorista fundada por ele ainda representa perigo para o Ocidente, diretamente ou como fonte de inspiração. “Ainda que o núcleo da Al-Qaeda compreenda menos de uma centena de militantes no Afeganistão, grupos associados contam com mais de 10 mil membros. O Talibã, outra facção aliada, mantém em suas fileiras 60 mil combatentes. O Tahrir Al-Sham (Organização pela Libertação do Levante) soma 20 mil. Também há grupos afiliados à Al-Qaeda no leste da África, além da Al-Qaeda na Península Arábica (no Iêmen) e da Jemaah Islamiyah (Sudeste da Ásia)”, disse o cingalês Rohan Kumar Gunaratna, autor de Inside Al-Qaeda: Global network of terror (“Por dentro da Al-Qaeda: Rede global de terror”, pela tradução livre).
De acordo com Gunaratna, Bin Laden influenciou diversas entidades muçulmanas — grupos, redes, células e personalidadess — como nenhum outro líder islâmico na história recente. “O legado dele continua a impulsionar a atual onda de terrorismo islâmico, extremismo e exclusivismo. Líderes muçulmanos e a elite deveriam derrotar a ideologia elaborada pelo mentor de Osama bin Laden, Abdullah Azzam, e propagada pelo ex-líder da Al-Qaeda, inspirando com sucesso tantas entidades ameaçadoras.”
Especialista em rede Al-Qaeda pelo American Enterprise Institute (AEI), think tank sediado em Washington, Katherine Zimmerman concorda em que o legado de Bin Laden ao jihadismo global envolve a ameaça do terror contra o Ocidente. “Bin Laden transformou o movimento (jihadista) ao concentrar as energias da Al-Qaeda sobre a Europa e sobre os Estados Unidos, em vez de nos governos locais. Ele permanece endeusado entre os jihadistas, reverenciado pela Al-Qaeda e pelo Estado Islâmico”, afirmou. “Suas palavras e imagens ainda hoje são utilizadas em material de recrutamento de terroristas, uma homenagem à sua influência.”
Por sua vez, Matthew Levitt — diretor do Programa Reinhard sobre Contraterrorismo e Inteligência do The Washington Institute for Near East Policy — advertiu que a rede mais ampla da Al-Qaeda continua a planejar operações externas contra alvos ocidentais. “Com certeza, a Al-Qaeda é um problema mais gerenciável, hoje, do que era duas décadas atrás, depois dos ataques de 11 de setembro de 2001. Suas filiais, agora, se concentram mais em insurgências regionais e em projetos de governança local, enquanto campanhas de drones e operações de forças especiais contra lideranças terroristas seguem restringindo suas operações”, disse.
Levitt alerta que classificar a Al-Qaeda como uma “sombra de si mesma” ou admitir que a organização terroristas está “nas cordas” — como os Estados Unidos têm feito nos últimos anos — não é uma atitude útil, considerando-se a natureza em constante evolução da rede terrorista. “Como Russell Travers, ex-chefe do Centro Nacional de Contraterrorismo, advertiu, em novembro de 2019, ‘a Al-Qaeda mantém uma estrutura de comando e meia dúzia de afiliados, mas vemos conexões e coordenação crescentes entre os afiliados’. O Pentágono também alertou que o interesse em atacar os EUA e outros alvos ocidentais ‘persiste’”, comentou.
Acefalia
A Al-Qaeda está praticamente acéfala. O médico egípcio Ayman Al-Zawahiri escondeu-se, provavelmente na fronteira entre Afeganistão e Paquistão, e não possui nenhum carisma. O número 2 da rede, Abu Mohamed Al-Masri, foi executado em Teerã por agentes israelenses durante missão secreta patrocinada pelos EUA, segundo o jornal The New York Times. Hamza bin Laden, filho e potencial sucessor de Osama, também perdeu a vida em uma operação secreta na região onde Al-Zawahiri estaria refugiado.
A operação que matou Bin Laden teria sido possível graças ao papel do médico paquistanês Shakeel Afridi. A pedido da Agência Central de Inteligência (CIA), ele simulou uma campanha de vacinação contra a hepatite em Abbottabad. Por meio dela, os EUA conseguiram uma amostra do DNA de um dos moradores do esconderijo do terrorista. Shakeel cumpre pena no Paquistão, mas pelo crime de financiamento de um grupo terrorista. Ao Correio, Qamar Nadeem Afridi, advogado do médico, negou que seu cliente tenha ajudado a identificar o paradeiro de Bin Laden. Ao mesmo tempo, sustentou que Shakeel sente-se “abandonado” pelos EUA (leia Depoimentos).
» Depoimentos
Vizinho surpreso
Sohaib Athar
“Ninguém teria identificado Bin Laden em Abbottabad. A cidade tem muitos moradores provenientes de diversas regiões do Paquistão e alguns estrangeiros. É uma cidade universitária, com faculdades de medicina, e destino popular de imigrantes após o terremoto de 2005. Minha reação ao saber que Bin Laden estava naquela casa foi dizer: ‘Oh, interessante.! Desde aquele 2 de maio de 2011, incidentes de terrorismo e atentados à bomba caíram praticamente a zero. No entanto, a arena do terrorismo continua intacta, seja com o Talibã, com a Al-Qaeda ou outra organização.”
Executivo, 44 anos, morava em Abbottabad até 2016, quando mudou-se para Islamabad. Vivia a apenas 2km do esconderijo de Bin Laden
Cliente “esquecido”
Qamar Nadeem Afridi
“Eu não diria que meu cliente foi traído pelos EUA, mas esquecido. Ele não teve nenhum papel em oferecer pistas sobre o esconderijo de Bin Laden. Shakeel Afridi é acusado de ajudar uma organização proibida, a Lashkar-e-Islam, a obter dinheiro, a agendar reuniões e ao socorrer feridos. Ele era um médico que ajudava as pessoas pobres de Abbottabad e nada fez de errado. Meu cliente foi condenado a 33 anos de prisão. Depois, a pena foi reduzida para 23 anos. A expectativa é de que a sentença caia para 10 anos. Espero que Shakeel seja transferido aos EUA, após a libertação.”
Advogado de Shakeel Afridi, o médico acusado de simular vacinações, em Abbottabad, para ajudar a localizar Bin Laden
» Eu acho
“Hoje, tanto a Al-Qaeda quanto o Estado Islâmico, seu sucessor, permanecem como os dois movimentos de ameaça global mais poderosos. Mas ambos sofreram. Seus fundadores e líderes de longo prazo foram mortos. Ainda assim, eles se expandiram globalmente. Os dois movimentos cooptaram uma dezenas de grupos na Ásia, na África e no Oriente Médio, que se incorporaram a eles.”
Rohan Kumar Gunaratna, autor de Inside Al-Qaeda: Global network of terror (Por dentro da Al-Qaeda: Rede global de terror, pela tradução livre)