Em uma decisão considerada histórica por especialistas, os Estados Unidos anunciaram nesta quarta-feira (5/5) que apoiam a suspensão de patentes de vacinas contra a covid-19.
Assinado por Katherine Tai, representante dos Estados Unidos em assuntos de comércio exterior, um comunicado informou que a "gestão Biden-Harris" (em referência ao presidente americano Joe Biden e a vice-presidente Kamala Harris) é favorável à "suspensão de proteções de propriedade intelectual de vacinas contra a covid-19".
"Essa é uma crise sanitária global, e as circunstâncias extraordinárias da pandemia de covid-19 pedem por ações extraordinárias. O governo federal acredita fortemente nas proteções da propriedade intelectual, mas para que a pandemia possa ter fim, defende o levantamento dessas proteções para vacinas anticovid", diz a nota.
Segundo Tai, os Estados Unidos vão "participar ativamente" de negociações sobre isso na Organização Mundial do Comércio (OMC).
A decisão do governo americano foi considerada histórica porque os Estados Unidos tradicionalmente se opõem à flexibilização de regras de propriedade intelectual.
Por outro lado, países com a Índia e a África do Sul estão pleiteando a liberação das patentes dos imunizantes desde outubro de 2020 na OMC, que lida com questões de propriedade intelectual e industrial no mundo.
Em novembro, 99 países apoiaram a iniciativa, mas países desenvolvidos se posicionaram contra. O Brasil não se manifestou, o que foi interpretado como uma mudança na tradicional postura a favor da flexibilização de patentes pelo Brasil.
Dificuldades para impactar o Brasil
Entrevistados pela reportagem, porém, se dividiram ao avaliar se a liberação temporária das licenças para vacinas é o caminho mais eficaz para aumentar a oferta de imunizantes para brasileiros.
Enquanto os defensores da medida dizem que ela permitirá que mais empresas e institutos produzam vacinas, os críticos afirmam que países como o Brasil não teriam a tecnologia necessária para produzir imunizantes inovadores como os desenvolvidos pela Pfizer e Moderna.
Os opositores da medida argumentam ainda que as patentes são um estímulo importante para as empresas investirem no desenvolvimento de novos produtos e dizem que esse sistema incentivou a criação de vacinas contra covid em prazo inédito.
"Mesmo com a quebra das patentes, o Brasil não terá condições de produção local de imediato. Vai demorar para obter a tecnologia e afastará as empresas farmacêuticas do país", acredita a advogada Maristela Basso, professora de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Para o advogado especialista em propriedade intelectual Ricardo Nunes, do escritório Daniel Advogados, um caminho "consensual", a partir da negociação entre empresas e governos, seria mais efetivo para aumentar a produção.
"A gente precisa de mais vacinas", resume Nunes.
Mas, segundo ele, desconsiderar o direto de patentes não é o caminho para isso.
Os defensores da suspensão das licenças de propriedade, por sua vez, reconhecem que há outros obstáculos práticos para o desenvolvimento de vacinas, como a carência de insumos e o domínio ainda restrito de novas tecnologias, mas dizem que a flexibilização das patentes é um primeiro passo nesse processo.
"Suspender as patentes resolve todos os problemas? Não resolve. Há barreiras tecnológicas, há barreiras de ingredientes, mas é um passo fundamental para a gente aumentar a quantidade de atores que podem colaborar com a produção de mais vacinas. Se a gente não dá esse passo, a gente não sai do lugar", diz Felipe Carvalho, coordenador no Brasil da Campanha de Acesso da organização Médicos Sem Fronteiras.
Segundo ele, mesmo que o Brasil não seja capaz de produzir mais vacinas a partir da flexibilização das patentes por falta de tecnologia ou fábricas para essa finalidade, o país poderá ser beneficiado com o aumento da importação a partir de uma oferta maior, devido ao maior número de produtores no mundo.
Atualmente, o Brasil tem capacidade de produzir duas vacinas: a CoronaVac, que foi desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com um laboratório Chinês, e o imunizante da Oxford/Astrazeneca, que é fabricado pela Fiocruz. Em ambos os casos, porém, o Brasil depende de insumos importados, vindos principalmente de China e Índia. Como a oferta desses ingredientes hoje é limitada, o abastecimento para a produção nacional tem atrasado.
Por causa disso, o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP, diz que é importante que uma aprovação da suspensão de patentes de vacinas inclua também a licença para produção de insumos.
Ele reconhece que a eventual flexibilização das patentes não terá efeito imediato de elevar a produção de vacinas em países como o Brasil, mas defende que a medida pode gerar efeitos importantes à frente.
"Não sabemos quanto tempo dura a imunidade das vacinas para covid-19. Pode ser que seja igual à da gripe, que temos que tomar todo ano. Então, a medida é importante sim, pensando nesse cenário mais de médio e longo prazo. Essa pandemia está longe de acabar", ressalta.
Negociação na OMC ainda pode levar meses
Entretanto, Katherine Tai afirmou no comunicado desta quarta-feira que tal processo levaria tempo, considerando "a natureza consensual" da OMC e "a complexidade dos assuntos envolvidos".
Mas os defensores da suspensão das licenças esperam que o peso político dos Estados Unidos contribua para acelerar as negociações na OMC.
"Essa é uma sinalização muito importante porque o governo dos Estados Unidos nunca, no âmbito multilateral, se colocou favoravelmente à suspensão de direitos de propriedade intelectual, em qualquer circunstância. É muito histórico", diz Pedro Villardi, coordenador do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual (GTPI) .
"Isso coloca o governo brasileiro numa posição muito difícil. e nós da GTPI acreditamos que o Brasil precisa mudar urgentemente de posição e apoiar a proposta de Índia e África do Sul", defendeu.
Para a professora da USP Maristela Basso, mesmo com o apoio americano, a aprovação da flexibilização de patentes na OMC ainda deve levar meses.
"O tema na OMC demandará tempo e qualquer decisão neste sentido dependerá do apoio dos demais países, especialmente da União Europeia. Assim, se a OMC decidir por fazer uma alteração no Acordo Trips (acordo sobre patentes), os países precisarão aprovar (essa mudança) nos seus parlamentos internos", ressalta ela.
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