Em 1994, quando 800.000 pessoas, em sua maioria tutsis, foram massacradas num banho de sangue de 100 dias em Ruanda, os Estados Unidos hesitaram em chamar de genocídio, usando finalmente o termo "atos de genocídio".
Este ano, em questão de meses, os Estados Unidos fizeram duas declarações nesse sentido sem reservas: primeiro acusaram a China de genocídio contra os uigures e outras comunidades muçulmanas predominantemente de origem turca.
E na semana passada, desafiaram anos de pressão da Turquia ao reconhecer o massacre de armênios pelo Império Otomano em 1915-17 como genocídio.
Isso anima muitos defensores dos direitos humanos, mas os especialistas duvidam que o governo dos Estados Unidos esteja iniciando uma nova era de coerência em relação ao que costuma ser visto como o maior mal da humanidade ou que as declarações se traduzam em ações.
"Este é um passo à frente na denúncia das atrocidades pelo que são", disse James Waller, diretor de programas acadêmicos do Instituto Auschwitz para a Prevenção do Genocídio e Atrocidades em Massa.
"Não sei, contudo, se sinalizam uma mudança em direção a um desejo mais universal de fazer declarações sobre eventos que podem ser interpretados como genocidas", disse Waller, também professor do Keene State College.
"Ainda acho que será em função de cada caso e influenciada por decisões políticas".,
O ex-secretário de Estado Mike Pompeo denunciou claramente o genocídio na região chinesa de Xinjiang, em seu último dia de mandato, encerrando um mandato no qual se gabou de aumentar a pressão sobre Pequim.
Já a declaração do presidente Joe Biden sobre o genocídio armênio cumpre uma promessa de longa data aos armênio-americanos, que não foi cumprida por Barack Obama quando Biden era seu vice-presidente, e veio em um momento em que as relações com a Turquia, aliada da Otan, já eram tensas.
Termos alternativos
Os Estados Unidos não usaram o termo genocídio no caso dos rohingyas, um povo predominantemente muçulmano de Mianmar, de onde cerca de 750.000 fugiram para Bangladesh com relatos de aldeias arrasadas, matanças generalizadas e estupros em massa.
Waller vinculou essa relutância à expectativa dos Estados Unidos de colaborar com o incipiente governo democrático de Mianmar, que foi derrubado pelos militares em fevereiro.
Em vez disso, os Estados Unidos falaram de "limpeza étnica" em Mianmar e, mais recentemente, na região etíope do Tigré.
Ernesto Verdeja, especialista em genocídio da Universidade de Notre Dame, disse que as concepções gerais de genocídio permanecem firmemente ligadas às particularidades do Holocausto, embora a definição legal seja mais universal.
Quando a violência não se encaixa no paradigma, muitos "se limitam a descartá-la: não é genocídio, é outra coisa".
"Em Ruanda, falou-se de 'ódio tribal'. Na Bósnia, falou-se de 'ódio étnico ancestral'", disse ele.
Existe a ideia de que "isso é o que essas pessoas fazem. Tem muitas conotações racistas e suposições coloniais".
"Nunca mais"?
Outro legado do Holocausto e da Convenção sobre o Genocídio de 1948: que o mundo "nunca mais" permita que aconteça.
"Se reconhece isso, tem a obrigação de fazer algo a respeito", disse Verdeja.
Até agora, as autoridades americanas limitaram sua influência em Xinjiang, impondo sanções, mas minimizando os apelos para boicotar as Olimpíadas de Inverno de Pequim.
Clinton não queria ser forçado a intervir em Ruanda, com os Estados Unidos assombrados por imagens de militares americanos arrastados pelas ruas um ano antes na Somália.
Mas, mais recentemente, as campanhas de pressão fizeram com que se declarassem genocídios.
O ex-presidente George W. Bush chamou a campanha de terra arrasada do Sudão em Darfur de genocídio e Obama disse que o grupo extremista Estado Islâmico estava cometendo um genocídio contra cristãos, yazidis e muçulmanos xiitas.
A declaração de Xinjiang veio após pressão de congressistas americanos de todos os partidos, que denunciaram os relatos de que Pequim estava limitando os nascimentos entre a minoria uigur, uma parte da definição da Convenção sobre o Genocídio.
Alguns críticos afirmam que a declaração de Xinjiang mostra uma politização, já que não há evidências de assassinatos em massa.
"Embora os chineses tenham reprimido severamente os uigures, a escala de atrocidades não chega perto do que o termo genocídio significa em termos históricos, conceituais e de bom senso", disse Michael O'Hanlon, membro do Brookings Institution, que, ao contrário, considerou que havia um caso claro para reconhecer o genocídio armênio.
"Além disso, a relação entre os Estados Unidos e a China não precisa de gasolina hoje. Devemos ser determinados e firmes, mas não incendiários".
Waller, que como Verdeja vê genocídio em Xinjiang, disse que a questão principal não é definir genocídio, mas preveni-lo.
Ele expressou sua esperança de que Biden fortaleça o Conselho de Prevenção de Atrocidades criado por Obama para identificar crises emergentes.
"Acho que o governo dos Estados Unidos está reconhecendo novamente o papel que podemos desempenhar para ajudar a construir sociedades fortes e resistentes ao genocídio, em vez de apenas responder ao fogo depois de iniciado".
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