A pressão sobre a China se intensificou, ontem, com novas críticas do Reino Unido à reforma eleitoral de Hong Kong e com a divulgação do relatório anual sobre os direitos humanos por parte do Departamento de Estado norte-americano. Logo depois de o Comitê Permanente do Parlamento chinês aprovar por unanimidade uma legislação que define o “patriotismo” como parâmetro para uma pessoa disputar uma cadeira no Comitê Legislativo de Hong Kong (LegCo), o presidente Xi Jinping promulgou o pacote de medidas, visto como uma pá de cal na democracia e uma mordaça definitiva na oposição.
O ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, Dominic Raab, acusou Pequim de “uma clara violação da Declaração Conjunta” — alusão ao pacto assinado com Hong Kong e com a China sobre o arranjo de soberania da ex-colônia britânica. Para Raab, a promulgação da reforma eleitoral “mina as liberdades do povo de Hong Kong e rompe com as obrigações internacionais de Pequim”.
O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, acusou a China de violação dos direitos humanos, ao citar “os abusos cometidos contra os uigures em Xinjiang e o aniquilamento da democracia em Hong Kong”. “Não estamos tentando conter ou controlar a China. O que pretendemos fazer é defender os princípios e os direitos básicos, e uma ordem internacional baseada em regras”, comentou o chefe da diplomacia de Washington. “Quando qualquer nação, de qualquer forma, tentar minar esses direitos ou essa ordem, nós nos levantaremos e falaremos abertamente sobre isso.” Blinken não se referiu diretamente à nova legislação adotada por Xi.
O comitê criado por Pequim avaliará o “patriotismo” e a “dignidade” de pretensos candidatos a uma cadeira no LegCo. Em resumo, apenas pessoas “leais” ao Partido Comunista Chinês poderão disputar as eleições — o próximo pleito para o LegCo está programado para o fim do ano. “As instituições do poder político e a governança de Hong Kong devem estar sempre nas mãos dos que amam a pátria e Hong Kong”, afirmou o Escritório de Assuntos de Hong Kong e Macau, órgão governamental chinês. “A excessiva politização da sociedade e as divergências internas que dividiram Hong Kong agora podem ser mitigados”, afirmou a chefe do Executivo local, Carrie Lam. Com as mudanças, o LegCo terá 90 cadeiras, 20 a mais do que antes. Mas, o número de legisladores escolhidos pelo povo passará de 35 para 20.
Ceticismo
Jeff Wasserstrom — autor de Vigil: Hong Kong on the brink (“Vigília: Hong Kong à beira do precipício”) e historiador da Universidade da Califórnia, Irvine — demonstra ceticismo sobre uma reação da comunidade internacional capaz de distensionar a pressão de Pequim sobre Hong Kong. “Haverá muitas declarações de governos criticando as manobras para minar as liberdades civis em Hong Kong. No entanto não está claro sobre o quanto Pequim se importará com essas exibições de repúdio”, avaliou.
“Por quase um ano, Pequim tem realizado manobras para dificultar a atuação até mesmo de críticos moderados do governo de Hong Kong. Desde a imposição da Lei de Segurança Nacional, em 2020, ativistas-chave pró-democracia fugiram para o exílio, enquanto outros terminaram atrás das grades. Hong Kong, de fato, jamais foi um lugar totalmente democrático”, afirmou o historiador. “As mudanças nas leis eleitorais, combinadas com manobras para limitar a habilidade de realização de protestos, transformaram uma cidade parcialmente democrática em um regime totalmente autocrático”, acrescentou.
Fei-Ling Wang, professor de assuntos internacionais do Instituto de tecnologia da Geórgia (Gatech, nos EUA), vê as manobras de Pequim como uma tentativa de fortalecer o controle sobre Hong Kong. “Elas minimizarão a presença política e a influência da oposição”, disse à reportagem. Ele aposta que a comunidade internacional verá essa estratégia como motivo para mais protestos e sanções. “Trata-se de nova evidência para que os críticos condenem a política externa assertiva de Pequim. Os povos de Hong Kong e da China continental pagarão um preço alto por isso.”
Membro do movimento pró-democracia de Hong Kong e autor de Liberate Hong Kong: Stories from the freedom struggle (“Libertem Hong Kong: histórias da luta pela liberdade”), Kong Tsung-gan afirmou ao Correio que a reforma do sistema eleitoral da metrópole atropelou totalmente o processo legislativo da antiga colônia britânica. “Essas mudanças são o último prego no caixão das eleições livres em Hong Kong. É importante notar que as eleições jamais foram livres ou justas: o meu povo nunca escolheu o chefe do Executivo, e somente 50% do Conselho Legislativo foi escolhido pelo voto. Apesar de a Lei Básica de Hong Kong ter previsto a introdução do sufrágio universal na cidade, o Partido Comunista Chinês nunca o fez. Agora, eleições reais em Hong Kong estão efetivamente mortas”, desabafou.
Segundo ele, o aspecto mais preocupante da reforma eleitoral é o fato de que ela proíbe eleições livres e impede qualquer pessoa que pertença a um partido ou grupo discordante do PCC de disputar cargos. “Significa o banimento do movimento pró-democracia da política de Hong Kong. Mata toda a oposição política dentro do sistema político formal”, disse.
» As novas medidas
Como a reforma eleitoral anunciada pela China impactará Hong Kong
» Um país, dois sistemas
Sob o modelo “um país, dois sistemas”, a China prometeu que Hong Kong poderia manter certas liberdades e um certo nível de autonomia legislativa por 50 anos. A cidade nunca foi uma democracia, apesar de sua miniconstituição, aprovada por Pequim, declarar que o “sufrágio universal” é o objetivo final. Agora, foi criado um sistema cuidadosamente calibrado para garantir o controle da China continental. Pequim o batizou de “Patriotas administrando Hong Kong”.
» Comitê de análise prévia
Acima de todo sistema, haverá um novo e poderoso comitê que examinará todas as candidaturas a cargos políticos. Aqueles que forem considerados uma ameaça à segurança nacional, ou não sejam patriotas o suficiente, não poderão se candidatar, ou disputar indicações. Os que forem rejeitados não poderão tentar impugnar a decisão na Justiça.
» Redução de assentos
No sistema antigo, a Assembleia Legislatura de Hong Kong tinha 70 cadeiras, metade delas eleita diretamente. As demais eram escolhidas por “circunscrições funcionais”, que representavam indústrias-chave e grupos de interesses especiais, principalmente pró-Pequim. As novas reformas ampliam as cadeiras da assembleia para 90. Apenas 20 serão definidas por voto direto, contra as atuais 35. A maioria, 40, será escolhida pelo Comitê Eleitoral (ampliado para 1.500 membros), e as 30 restantes pelas “circunscrições funcionais”.