Para não perder o fio da meada que liga a espionagem ao destino da justiça, é bom não ver o mundo pelo lado da conduta de aversão. Pessoas ou governos, por hábito ou hipocrisia, gostam de escolher um lado e apostar nele como verdade. Quando a origem do vício aparece, já é incorrigível. 2013 foi o início de um padrão de espionagem, usado em 2014 para criar a Lava-Jato e agora para enterrá-la.
Sem ter no horizonte nenhum projeto de progresso para seu povo, o governo fingiu ver virtude na democracia liberal, tornou inconsequente a democracia representativa e tirou do horizonte a democracia social. E, agora, a sociedade é informada pelo Supremo que juízes não devem ser levados a sério.
Os cidadãos perderam a importância como indivíduos que merecem respeito. Lembra nações indígenas que sucumbiram diante da civilização ocidental. No fundo, como um touro sentado, se misturaram à bela e melancólica história de Siouxs e Cheyennes retirada do pungente relato de Dee Brown sobre a destruição dos índios em Enterrem meu coração na curva do rio.
Os fatos e suas conexões são implacáveis diante da história. Naquela época, aconteceu que um funcionário da CIA arrependido, de posse de algum laptop surrupiado da Agência de Segurança dos EUA, foge para a China e aparece vagando num aeroporto em Moscou. Desde então, há um espião foragido que descortinou “segredos” de governantes “indignados”. O segredo, nesse caso, é a revelação do segredo, e a indignação é protocolar.
Como o Brasil adora grampear, vazar e enfiar conversa alheia como prova em processo, e fez disso um esporte jurídico ilegal, a espionagem de fora ajudou o vendaval que criou a tempestade da Lava-Jato. Desde o início, as ramificações mundiais do espião patriota — que diz revelar abuso de autoridade nos EUA e do Judiciário arbitrário, que aceita provas ilegais por patriotismo no Brasil — são as mesmas. Há uma sociedade high tech de espionagem e contraespionagem dando as cartas na política.
Qualquer país que confunda democracia e direito à informação com atraso tecnológico está sujeito a precisar de espiões — hoje hackers — para fazer e desfazer o que tiver força e vontade para fazer. É chocante a vitalidade com que os diversos disfarces da espionagem tornaram-se fatos normais nos processos políticos e judiciais no mundo. A democracia entra em colapso quando quem melhor organiza interesses não é mais a política, mas a manipulação da Justiça, por patriotismos diversos.
Em 2013, quando Brasil e Alemanha souberam, pelo espião da CIA-NSA Edward Snowden, que suas comunicações foram espionadas por Washington, a denúncia estremeceu mais Dilma Rousseff do que Angela Merkel. A diferente qualidade da raiva das duas definiu o seu destino: a brasileira caiu, a alemã está no poder até hoje.
Se você quiser saber a razão oficial pergunte a Obama, que sabia de tudo o que se falava em Brasília, como revelou o hacker foragido. Foram tantos os vazamentos de conversas e os cruzamentos de operações financeiras que o presidente americano concordou com a suspeita de que o Brasil usava o Estado para alavancar um capitalismo de esquerda, tipo chinês. O gigante sul-americano estava formando um clube de suas grandes construtoras, apelidadas empreiteiras, aliadas de meia centena de políticos com fórum privilegiado, chamados corruptos e uma dezena de operadores financeiros, xingados como doleiros. Um cartel de campeões, para avançar em obras em outros países, com dinheiro da Petrobras.
Assim, de escândalo em escândalo, prisão em prisão, montado no volátil clamor nacional pela honestidade, procuradores imaturos, juízes de todas as cortes, continuaram a tarefa de desfigurar o sistema processual brasileiro. E o Estado, este recalcitrante histórico que não deixa nunca a sociedade adquirir maturidade, meteu-se no processo eleitoral de forma escandalosa e vem passando ileso pelas suas consequências. Agora, quando a espera virou uma agonia, jogou a toalha e rasgou a fantasia.
Há uma fase da vida em que as opiniões são expressas com mais vivacidade do que em consideração pela verdade. Costuma ser na adolescência. Difícil dizer que quem tem 521 anos de história não é adulto. Por isso, melhor preferir a explicação de William Shakespeare: a raiva é um veneno que bebemos esperando que os outros morram.
O Brasil não deve confundir espionagem com inteligência. Não adianta “saber” tudo sem inteligência. Ouve-se tudo; sabe-se pouco. Quando o Executivo tem segredos e o Legislativo se cala, o Judiciário perde o autocontrole. E desmoralizado o Estado, a sociedade fica sozinha como está, enterrando seus corpos na curva do rio.