Os paraguaios completaram na segunda-feira (08/03) quatro dias seguidos de protestos contra a falta de medicamentos e de insumos para o atendimento às vítimas de coronavírus e contra o governo do presidente Mario Abdo Benítez. A crise dos últimos dias já derrubou o ministro da Saúde e deu início a movimentações de congressistas paraguaios para realizar o impeachment do presidente.
Abdo Benítez, que tomou posse em 2018 e no ano seguinte quase perdeu o cargo, voltou a estar na mira da oposição, de sua própria sigla (o Partido Colorado) e das ruas.
Deputados do opositor Partido Liberal Radical Autentico (PLRA) anunciaram que entrarão, nesta terça-feira, na Câmara dos Deputados, com pedido de julgamento político do presidente para que ele seja afastado.
A nova crise política ocorre quando o país registra uma escalada de casos de coronavírus. Dos menos de cem casos diários que chegou a registrar, o vizinho do Brasil passou a ter cerca de 1,5 mil notificações da doença. A situação do sistema de saúde nesta etapa da pandemia, um ano após o registro do primeiro caso de covid-19, foi a "gota d'água", dizem analistas paraguaios, para a insatisfação popular.
As manifestações incluem pessoal de saúde, familiares de vítimas de covid-19 e opositores do governo.
País com pouco mais de sete milhões de habitantes, o Paraguai tem um dos sistemas de saúde mais frágeis da América do Sul, segundo levantamentos internacionais.
Com mais de 70% da população dependente do carente sistema público, o governo fechou suas fronteiras, incluindo com o Brasil, nos primeiros meses da pandemia e vinha sendo elogiado por setores paraguaios por evitar a calamidade vista em outros países da região, como no Peru, na Bolívia e em cidades brasileiras, como Manaus.
O quadro mudou, quando surgiram os primeiros escândalos de corrupção, na pandemia, e quando as medidas restritivas para evitar a expansão do vírus passaram a ser relaxadas. Além disso, o agora ex-ministro da Saúde, que é amigo de infância do presidente foi acusado por opositores de não realizar uma gestão eficiente na pandemia.
"No Paraguai, faltam hospitais, postos de saúde, insumos, e, inclusive, médicos. A situação do sistema de saúde já era assim antes da pandemia. Num primeiro momento, o governo tomou todas as medidas para evitar um colapso maior do sistema de saúde com o coronavírus.
Como era emergência, fez compras da China sem licitação, surgiram denúncias de irregularidades, as licitações foram retomadas e a lentidão na chegada dos insumos aumentou", disse à BBC News Brasil o analista político e econômico Fernando Masi, do Centro de Análise e Difusão da Economia Paraguaia (Cadep). O Paraguai dedica somente 3% do Produto Interno Bruto (PIB) ao sistema de saúde, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS), recomenda 6%, observou Masi.
Na sexta-feira, no primeiro dia de manifestações, o ministro da Saúde, Julio Mazzoleni, deixou o cargo, e, no dia seguinte, o presidente anunciou a saída de três outros ministros, além de informar, através de sua assessoria, que todos os ministros deveriam colocar o cargo à disposição.
"Sou uma pessoa de diálogo e não de confrontação, e meu compromisso é ouvir a todos, prestando atenção em todas as críticas. Sou consciente que as pessoas esperam mudanças e vou fazê-las", disse o presidente, no fim de semana. Depois de seu discurso, no sábado, as manifestações prosseguiram.
Nesta segunda-feira, durante a transmissão da posse de dois novos assessores da Presidência, através das redes sociais, os internautas escreviam 'Fuera Marito (como é conhecido o presidente)', 'Fuera inútiles' ('Fora Marito' e 'Fora inúteis') 'Fuerza presidente' (Força presidente), refletindo o ambiente social e político do vizinho do Brasil.
Nos quatro dias de protestos, os manifestantes saíram às ruas com cartazes que diziam "governo corrupto" e pedindo a renúncia de Abdo Benítez. A onda de protestos começou na sexta-feira no centro de Assunção, a capital paraguaia, quando a polícia reprimiu violentamente, deixando vinte e uma pessoas feridas e um homem, Alejandro Daniel Florentín, de 32 anos, morto, segundo a imprensa local.
Impeachment
Com 29 votos, os oposicionistas não têm os votos suficientes para o afastamento do presidente, já que são necessários 53 votos para seu impeachment. Analistas indicam que a iniciativa do PLRA contribui para a pressão contra o presidente, mas "sem que ele caia, até o momento".
O setor mais amplo, decisivo e influente do Partido Colorado, que é o Honor Colorado, ligado ao ex-presidente Horacio Cartes, antecessor de Abdo Benítez, já teria decidido não apoiar o julgamento político do presidente.
Político influente na legenda, Cartes é empresário de diferentes ramos, incluindo cigarros e futebol, e com acusações de irregularidades. A porta da casa do ex-presidente tem sido um dos endereços das manifestações em Assunção, assim como o Congresso Nacional. Com sua influência no partido, em 2019, foi a postura de Cartes que respaldou e, depois, evitou o impeachment de Abdo Benítez, evidenciando as disputas internas do partido, segundo analistas locais.
Naquele processo de impeachment, que envolvia também o vice-presidente, o motivo foi um acordo assinado com o Brasil que renegociava a compra de energia da usina hidrelétrica binacional de Itaipu e que foi vista como "secreta" e "prejudicial" ao Paraguai.
Após horas de tensão e de expectativas, o acordo foi engavetado e Abdo Benítez permaneceu no cargo, depois do respaldo do Partido Colorado. Abdo Benítez foi eleito para mandato até 2023 e, desta vez, segundo publicou o jornal ABC Color, de Assunção, os 'cartistas', ligados ao ex-presidente, apoiam a continuidade do atual presidente, mas com a maior presença no governo, através de cargos.
"Co-governo de Marito e Cartes", publicou o diário na sua capa.
'Máscaras de ouro'
Um dos primeiros escândalos apontando irregularidades foi o que ficou conhecido como 'Tapabocas de oro' ('Máscaras de ouro'), quando surgiram denúncias de compras superfaturadas da proteção contra o coronavírus. As denúncias, que acabaram na Justiça, incluíram também a compra de leitos e outros insumos da China e levaram à destituição do diretor da Aeronáutica Civil.
Para tentar amenizar a falta de recursos para a pandemia, no ano passado, o governo de Abdo Benítez conseguiu empréstimos com organismos internacionais e emitiu títulos no mercado financeiro, destinando US$ 600 milhões ao sistema de saúde.
Mas a aceleração dos casos e a dependência do sistema de saúde público, agora melhor preparado para a atenção às vítimas de coronavírus, levou que até quem tem plano de saúde recorra aos hospitais públicos para atenção contra a doença, de acordo com diretores de hospitais. Existem casos onde a ocupação de leitos chega a 100%, num dos momentos mais dramáticos da pandemia no país que registra, nos últimos dias, 1,5 milcasos de coronavírus por dia, com um total superior a 165 mil infectados e mais de três mil óbitos.
Nas manifestações, familiares das vítimas da doença contaram que, em muitos casos, elas mesmas devem comprar os medicamentos indicados e que não saem barato, informou a imprensa local.
Doações do Chile
Com poucos recursos em caixa e com problemas de dívidas com a indústria farmacêutica local, como contaram fontes paraguaias, o Paraguai recebeu apenas quatro mil doses da vacina russa Sputnik V para o pessoal de saúde e prometeu a chegada de quatro milhões de doses pelo consórcio Covax Facility, ainda sem data exata para o desembarque.
Neste ambiente de incertezas, o Chile informou que enviará vinte mil doses de vacinas para os paraguaios.
País com cerca de dezessete milhões de habitantes, o Chile comprou, antecipadamente, no ano passado, imunizantes dos vários fabricantes, para vacinar a toda a sua população - e até mais. Até o mês passado, cálculos apontavam a aquisição de 35 milhões de doses de vacinas contra covid. A meta do governo chileno é vacinar a toda a população de risco ainda no primeiro semestre deste ano.
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