O ano começou na frente externa
Concluída a renovação das mesas diretoras do Congresso, com a eleição de aliados do Planalto para presidir a Câmara e o Senado, volta com força à agenda política o tema da reforma ministerial. O Centrão, que garantiu a vitória dos candidatos apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro, cobra a fatura e coloca o Itamaraty entre os seus alvos, com artilharia pesada sobre o ministro Ernesto Araújo.
Da perspectiva dos parceiros externos, mais do que nomes, o que concentra as atenções é a discussão de rumos na política externa. O chanceler é visto como fiador e coautor das linhas traçadas por Bolsonaro desde a campanha de 2018, em especial do alinhamento sistemático com Donald Trump. Passadas duas semanas da troca de guarda na Casa Branca, Joe Biden enunciou na noite de quinta-feira uma reversão explícita e drástica, sob o lema de “a diplomacia está de volta”.
No centro da nova estratégia está a retomada de uma abordagem multilateral para as questões centrais da geopolítica global. Biden já havia recolocado os EUA no Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas. Da mesma maneira, retornou à Organização Mundial da Saúde (OMS), como gesto eloquente em direção ao sistema ONU — em particular, no enfrentamento da pandemia, menosprezada por Trump e tratada segundo a ótica unilateralista resumida no slogan America First.
Quem vem em primeiro?
Sintomático, por sinal, que o novo presidente tenha se dirigido precisamente ao Departamento de Estado para o primeiro discurso de maior fôlego sobre política externa. Foi a primeira visita de Biden, como chefe de Estado, a um órgão da administração federal. Quatro anos antes, Trump havia colocado em primeiro lugar a CIA, uma das expressões concretas da doutrina conhecida como Destino Manifesto, que proclama a hegemonia global dos EUA.
Coincidência ou não, foi justamente da CIA que saiu Mike Pompeo, em 2018, para chefiar o Departamento de Estado até o último dia de Trump na Casa Branca. Pompeo, agora alvo de sanções da China, foi substituído por Anthony Blinken, diplomata de carreira e colaborador de longa data do novo presidente — inclusive quando Biden presidiu o Comitê de Relações Exteriores do Senado, antes de tornar-se o vice de Barack Obama.
Restauração
Deve entrar nas atenções do Planalto e do Itamaraty outra prioridade elencada no discurso para o Departamento de Estado: a recomposição de alianças políticas e militares de longa data, em particular com a Europa. A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, desafeta pública de Trump, foi uma entre os líderes políticos mundiais com os quais Biden fez questão de conversar nos primeiros dias de mandato.
O Brasil, até onde se sabe, é objeto de uma revisão pelos diplomatas ligados à divisão hemisférica — como é chamada, no Departamento, a América Latina. Na região, ao menos de início, as atenções dos EUA passam a se concentrar em um aspecto de alcance mais longo: a contenção da influência econômica e comercial da China, identificada como o “principal competidor”, mas não mais como adversário de uma guerra protecionista.
Reorientação
No discurso para os diplomatas, Biden deixou entrever outra mudança de abordagem com implicações de vulto na política de Washington para a estratégica — e sempre desafiadora — região do Oriente Médio. No caso, o presidente “falou” com a linguagem do silêncio: em contraste frontal com a agenda quase obsessiva de Trump para o tema, o veterano democrata não mencionou o Irã.
Desde que se confirmou a vitória de Biden na eleição de novembro, observadores e insiders discutiam a possibilidade de os EUA retornarem ao acordo firmado por Obama e mais seis governantes, em 2015, para conter o programa nuclear iraniano. Trump denunciou o tratado e retomou um conjunto de sanções ao regime islâmico — medidas que atingem empresas de terceiros países, caso façam negócios com Teerã, ao estilo do bloqueio econômico imposto a Cuba há mais de meio século.
Recalibragem
A sugestão de uma possível mudança de tratamento da esfinge representada pelo Irã dos aiatolás, há mais de quatro décadas, traz embutida outro componente essencial da política americana para o Oriente Médio. A opção de Trump pelo isolamento de Teerã foi parte de um alinhamento integral aos interesses regionais e globais de Israel e do premiê Benjamin Netanyahu. Não por acaso, foi acompanhada pela normalização de relações entre o Estado judeu e monarquias árabes do Golfo Pérsico, aliadas íntimas de Washington.
A diplomacia brasileira, sob a batuta de Bolsonaro e do chanceler, seguiu os passos de Trump no Oriente Médio, e ficou a alguns passos de acompanhar um dos gestos de maior impacto: a mudança da embaixada para Jerusalém. Por sinal, o Brasil fez coro ao plano anunciado pelo aliado americano para o conflito entre Israel e os palestinos — que rechaçaram a proposta, por sacramentar a ocupação israelense em amplas faixas da Cisjordânia.
Desde 2010, nos últimos dias do governo Lula, o Brasil reconhece a soberania palestina sobre a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e o setor oriental (árabe) de Jerusalém, pretendido como capital de um Estado soberano.