Myo, 27 anos, funcionário de uma organização não governamental em Rangum, antiga capital de Mianmar, anseia por ajuda. “Queremos que a comunidade internacional intervenha e tome uma ação coletiva contra esses covardes”, suplicou o birmanês ao Correio, sob condição de não ter o sobrenome revelado. Depois de caminhar pelas ruas, ele relatou uma “cidade em silêncio”. “Os militares estão por todos os lados, com blindados. Tentam criar um motim”, acrescentou. “Temo pelo futuro do meu país. O regime militar vai nos afetar, financeira e emocionalmente. Haverá inflação e mais sanções impostas”, desabafou à reportagem Shin, moradora da capital de Mianmar, Naypyidaw. Nas primeiras horas do golpe que levou à prisão Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz em 1991, os militares decretaram estado de emergência com duração de um ano e impuseram toque de recolher. Os golpistas destituíram 24 ministros de Suu Kyi — líder do partido Liga Nacional para a Democracia (LND) — e nomearam 11. O Exército birmanês assegurou que o golpe “é necessário para preservar a estabilidade” e prometeu eleições “livres e justas” ao fim do estado de emergência.
Em reação à mudança forçosa do regime birmanês, ocorrida na manhã de ontem (noite de domingo, em Brasília), protestos irromperam pela Ásia, e o mundo repudiou o complô. Joe Biden — presidente dos EUA — denunciou “um ataque direto à transição do país para a democracia e o Estado de direito”. “A comunidade internacional deve se unir, em uma só voz, para pressionar os militares birmaneses a renunciarem imediatamente ao poder”, afirmou, além de ameaçar impor sanções à antiga Birmânia. “A detenção de líderes políticos em Mianmar é um sério golpe às reformas democráticas no país. Exorto a liderança militar a respeitar a vontade do povo e aderir às normas democráticas”, declarou António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). O Conselho de Segurança fará uma reunião de emergência, na manhã de hoje, para debater o assunto.
A União Europeia (UE) condenou “fortemente” o golpe, cobrou a restituição do governo e a libertação de “todos os detidos ilegalmente”. Governos do bloco condenaram o golpe, individualmente. O Reino Unido convocou o embaixador birmanês Kyaw Zwar Minn para expressar preocupação e pedir “garantias de segurança aos detidos”.
Os birmaneses não escondem a desilusão com o futuro. “Nós estamos desesperançosos, todos nos afundamos na ansiedade e na tristeza. A prisão de Suu Kyi e de outros líderes da LND é um roubo à nossa democracia, o roubo do futuro de Mianmar. Nós votamos pela democracia”, lamentou Myo. “Isso é algo totalmente inaceitável, uma ação desumana”, acrescentou. Shin espera que as Nações Unidas e países poderosos “permaneçam fieis à sua palavra e assegurem que o cenário de 1998 não se repita” — pelo menos 3 mil pessoas morreram durante o golpe daquele ano.
Retorno
Professor assistente do Instituto de Estudos do Oriente Médio e Extremo Oriente da Universidade Jaguelônica (Cracóvia), o polonês Michal Lubina aponta “um retorno ao passado” em Mianmar, ao status quo anterior a 2010. “Veremos críticas do Ocidente, com possível aplicação de sanções, enquanto a China defenderá o regime militar birmanês e tentará ganhar espaço no país”, admitiu ao Correio. Também autor de Uma biografia política de Aung San Suu Kyi, Lubina aposta que a condenação internacional não mudará o cenário político de Mianmar. “As Forças Armadas (Tatmadaw) não se importam muito com o mundo externo. Não precisam disso, desde que tenham o apoio de Pequim.”
O especialista não descarta um massacre em decorrência do golpe. “Se as pessoas saírem para as ruas, haverá banho de sangue. O Exército disparará contra os manifestantes, como fez em 1962, 1988 e 2007. Em 1988, os manifestantes oravam por um ‘general justo e honesto’ que se unisse a eles. Não aconteceu e não vai acontecer agora: o interesse corporal do Tatmadaw é muito forte”, disse Lubina.
Ele crê na ineficácia de sanções da Casa Branca. “Elas não funcionaram antes de 2010 e não funcionarão agora por duas razões: a natureza introspectiva das Forças Armadas; e o fato de nações asiáticas não participarem das sanções, o que as torna sem sentido.”
Comitê Nobel se diz “horrorizado”
O Comitê do Nobel norueguês declarou-se “horrorizado” com o golpe em Mianmar e com a prisão de Aung San Suu Kyi, e exigiu sua “libertação imediata”. Por meio de comunicado, o grupo também pediu “a libertação imediata de Aung San Suu Kyi e de outros dirigentes políticos detidos, além de respeito pelos resultados das eleições legislativas do ano passado”. “Aung San Suu Kyi recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1991 em reconhecimento por sua corajosa luta pela democracia em Mianmar”, lembrou o Comitê do Nobel. “Ela continuou sendo uma figura importante no desenvolvimento da democracia, tanto durante os anos em que foi mantida em cativeiro pelo Exército como depois de sua libertação”, acrescentou.
» Convulsão política
Entenda a dinâmica do quarto golpe militar a atingir Mianmar (1958, 1962, 1988 e 2021)
O início da crise
O Exército denuncia que a eleição de novembro passado, a segunda desde o fim da ditadura militar em 2011, ocorreu em meio a irregularidades. A Liga Nacional para a Democracia (LND), que já estava no poder, obteve 83% das 476 cadeiras no Parlamento, mas o Exército alega ter descoberto 10 milhões de casos de fraude eleitoral e pediu à Comissão Eleitoral que publicasse as listas de partidos, o que não foi feito.
O golpista
Na quarta-feira da semana passada, o chefe do Exército, general Min Aung Hlaing (foto), o homem mais poderoso de Mianmar, ameaçou que a Constituição poderia ser “revogada” sob certas circunstâncias. Nas primeiras horas de ontem, o Exército prendeu lideranças civis do governo e membros da sociedade civil, e colocou generais em cargos-chave.
Prisioneira ilustre
Entre as personalidades políticas detidas, estão Aung San Suu Kyi, Prêmio Nobel da Paz e líder da NLD, e o presidente do país, Win Myint. Suu Kyi (foto), chamada de a “Dama de Rangum”, assumiu o papel de “conselheira de Estado”, um cargo a partir do qual ela dirigia, de fato, o governo.
As primeiras medidas
O Exército birmanês decretou o estado de exceção por um ano e prometeu a realização de eleições “pluralistas, livres e igualitárias” quando acabar este período. Enquanto isso, generais assumiram os principais cargos. Myint Swe (foto), que liderava o poderoso comando militar de Rangum e atual vice-presidente de Mianmar, se tornou presidente interino por um ano. O controle “legislativo, administrativo e judicial” está nas mãos de Min Aung Hlaing, que agora concentra quase
todos os poderes.
» Palavra de especialista
Remoção estratégica
“O golpe era previsível, mas não o cenário mais possível, pois é irracional e ilógico para os interesses de Tatmadaw (nome oficial das Forças Armadas de Mianmar). No entanto, os líderes políticos nem sempre agem de maneira racional; emoções e ambições frequentemente dominam e ofuscam cálculos racionais. A julgar pelo gabinete, comprometido com os reformadores do início da década passada, Tatmadaw pretende controlar os danos. Mas, isso será difícil.
Com a remoção de Aung San Suu Kyi, o Tatmadaw removeu seu ‘escudo’ no front internacional. Agora, os ataques a Mianmar pelo que o Exército fez em 2017, em Rakhine, somente vão se intensificar (os soldados birmaneses foram acusados de crimes de guerra contra os muçulmanos rohingya).” Michal Lubina, professor assistente do Instituto de Estudos do Oriente Médio e Extremo Oriente da
Universidade Jaguelônica (Cracóvia, Polônia) e autor de Uma biografia política de Aung San Suu Kyi.
» Depoimento
“Fiquei assustada”
“Às 3h28 (17h58 de domingo em Brasília), todas as comunicações foram cortadas. Pensei que o problema fosse na rede wi-fi. Tentei reiniciar o roteador, mas percebi que tudo tinha sido cortado. Fiquei assustada. Ouvi blindados durante a madrugada. Então, vi que algo estava acontecendo. Os militares reabriram a internet ao meio-dia de hoje (2h30 de ontem em Brasília), mas apenas para dados de celulares. Logo, imaginei um golpe em andamento. Vi coisas assim em 2008, quando monges protestavam pelas ruas. Eu vivia em uma cidade pequena, repleta de monastérios. Enfrentei uma lei marcial. Vi o quão poderoso um Exército pode ser.” Shin (ela quis ser identificada apenas pelo primeiro nome), 27 anos, moradora de Naypyidaw (capital governamental de Mianmar).