Cada um por si contra a covid
Em parte, é o legado de quatro anos com Donald Trump na Casa Branca. Em parte, é a pressão da agenda política doméstica sobre cada governo que deve tomar suas decisões no combate à pandemia. Na esfera da economia privada, é a concorrência entre as gigantes da indústria farmacêutica pelo mercado mais do que promissor das vacinas contra o coronavírus.
O resultado da interação entre esses e outros fatores é que a crise sanitária mundial entra no segundo ano sob o signo que regeu os primeiros 12 meses desde que a covid irrompeu, na China. Medidas de prevenção, pesquisas e o desenvolvimento de imunizantes seguiram a lógica do cada um por si, com escassa coordenação. Ela esteve presente na União Europeia, pela natureza mesma do bloco, mas não foi o bastante para evitar uma disputa com os fornecedores de vacina.
Mais do que tudo, o fracasso das iniciativas destinadas a abordar a emergência por uma perspectiva multilateral significa que países com menor poderio econômico e político-diplomático ficaram, como seria de esperar, nos últimos lugares da fila. E, enquanto o vírus segue se expandindo e passando por mutações, as perspectivas mais otimistas indicam que a imunização não alcançará taxas significativas, em termos globais, antes do fim de 2021.
Seresteiro
Os primeiros 10 dias de Joe Biden na presidência confirmaram as expectativas de que os EUA retomariam, no essencial, as linhas mestras da política externa de Barack Obama, a quem o novo titular serviu como vice, de 2009 a 2017. Não apenas pela presença de um diplomata de carreira na chefia, o Departamento de Estado reorienta sua bússola na direção do sistema multilateral, com o retorno à OMS e ao Acordo de Paris sobre mudanças climáticas.
O veterano presidente, tarimbado por décadas de mandato no Senado, faz acenos também a aliados europeus que, como Alemanha e França, se ressentiam da opção de Trump por uma ação externa unilateral — sintetizada no lema “America first”. chanceler Angela Merkel deve passar o bastão após as eleições marcadas para setembro. O presidente Emmanuel Macron começa a pensar na disputa pelo segundo mandato no Eliseu, em 2022.
Para ambos, o tempo político é relativamente curto e demanda agilidade na rearticulação com o terceiro vértice do triângulo dominante da geopolítica global: EUA-China-UE. Às voltas com difíceis negociações que cercam o divórcio recém-consumado com o Reino Unido, os governantes europeus voltam os olhos para a margem oposta do Atlântico Norte na expectativa de escutar do novo parceiro o verso clássico da seresta eternizada na voz de Nelson Gonçalves: “Aqui me tens de regresso!”
Com que roupa?
Pelo ângulo de visão do Planalto e do Itamaraty, a troca de guarda em Washington se insinua como a primeira página de um roteiro ainda por escrever, ou como os primeiros passos de uma coreografia nem ao menos esboçada. O presidente Jair Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo seguem tateando à procura de um caminho para recolocar nos trilhos as relações bilaterais, ao fim de dois anos de um pas-de-deux dançado à base de governo a governo.
Em meio a especulações sobre possíveis mudanças na equipe ministerial, inclusive como desdobramento da disputa pelo comando da Câmara e do Senado, o presidente continua buscando resposta à pergunta lançada no samba de Noel Rosa: “Com que roupa eu vou?”
Verde que te quero...
Desde já, a diplomacia brasileira tem na lista de prioridades a busca de acordes harmônicos com americanos e europeus no sempre controverso tema da política ambiental. Biden, como esperado, não apenas retomou o Acordo de Paris: indicou com clareza que os EUA apontarão os radares para a preservação da Amazônia. Macron, que empenhou seu prestígio de início de mandato nas negociações, reafirmou que a parceria comercial UE-Mercosul, fechada em 2019, terá a ratificação condicionada a cláusulas que possam coibir o desmatamento.
Uni-vos
Na corrida pela imunização, com governadores de Estado, ministros vários e outros atores políticos chamando para si a busca de acordos com fornecedores, mais um setor entra em campo. As principais centrais sindicais brasileiras já haviam acertado ponteiros com a Venezuela para organizar a distribuição, por aqui, de suprimentos de oxigênio doados para os hospitais, sobrecarregados com a súbita alta dos casos de covid. Agora, os dirigentes sindicais apelam aos colegas chineses para que ajudem a garantir o fornecimento de vacinas e insumos, de modo que Butantan e Fiocruz possam acelerar a produção local — ingrediente indispensável para a imunização deslanchar por aqui.