O movimento foi percebido ainda em meados do ano passado, quando apenas se iniciavam as discussões sobre a vacina contra a covid. Agora, as ampolas começam a sair dos laboratórios da indústria farmacêutica, distribuídas pelo mundo segundo a lei do “quem pode mais chora menos”. E os círculos diplomáticos constatam, com doses de assombro e preocupação: no combate à pandemia, o exercício da política externa brasileira se mostra tão fragmentado quanto as medidas de ordem propriamente sanitária.
O entrave para que o país receba da China o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), insumo essencial para a fabricação local de imunizantes, abriu a porteira para iniciativas, avulsas ou coordenadas, com uma característica comum: contornam o governo federal e, muito especialmente, o ministro das Relações Exteriores.
Entre alguns dos principais parceiros europeus, causou certa decepção a quase indiferença do Planalto e do Itamaraty para com a iniciativa de se estabelecer, na ONU, um consórcio mundial destinado a planejar e gerir a produção e, sobretudo, a distribuição das vacinas. Enquanto as potências econômicas movimentavam-se para garantir lotes para uso próprio, o Brasil assistia.
Assim como na determinação de medidas para controle do contágio e atenção aos doentes, couberam em boa parte aos governos de estado as gestões com múltiplos fornecedores. São Paulo fechou parceria com a chinesa Sinovac para o desenvolvimento da CoronaVac, que começa a ser produzida no Instituto Butantan. Paraná, Bahia e o DF buscaram entendimentos com a Rússia para importar a Sputnik V. O governo Bolsonaro apostou as fichas apenas na vacina de Oxford em parceria com a AstraZeneca, que será fabricada, por aqui, na Fiocruz.
Quem tem boca...
Com o Butantan e a Fiocruz à espera de que a China envie os insumos, fabricados em larga escala também na Índia, a vacinação no Brasil segue a conta-gotas. E os mais diversos atores ocupam, no palco, a posição deixada vaga pelo Planalto e pelo Itamaraty.
Assim como Bolsonaro e seus filhos, o chanceler Ernesto Araújo não tem trânsito com a potência ascendente comunista, desgostosa com o tratamento que mereceu em declarações públicas e postagens nas redes sociais. Coube ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, fazer a ponte com o embaixador chinês, Yang Wanming. O ex-presidente Michel Temer ativou os laços cultivados no breve mandato. O vice-presidente Hamilton Mourão, com o discurso condicionado ao uso do cachimbo da hierarquia, apresentou-se para a missão — mas como opção de último caso, ou quase.
...vai a Pequim?
Por fim, o fórum de governadores criado para gerir a crise da vacina pressiona o governo para que mande uma missão oficial a Pequim. A leitura política de quem acumulou experiência nas tratativas diplomáticas com a China ressalta sempre o papel reservado pelo império milenar ao cerimonial. Desde a antiguidade remota, a visita de emissários é recebida como passo importante na coreografia das relações com outros países. Sinaliza, aos olhos de lá, reconhecimento e interesse da parte de quem os envia.
Acerto de ponteiro
O presidente e o chanceler acentuaram a guinada de política externa operada desde o impeachment de Dilma Rousseff. Com Temer, a bússola de Brasília passou a indicar a direção de Washington. De 2019 para cá, o ponteiro se alinhou fixamente a Donald Trump, em nome de uma relação prioritária com os EUA.
Daqui para a frente, (quase) tudo vai ser diferente, como anuncia o verso famoso de Roberto Carlos. Trump, que compartilhava com o colega brasileiro o desdém pela ONU e outros organismos internacionais, voltou para seu resort na Flórida. Na Casa Branca, o democrata Joe Biden começou o mandato, entre outras medidas, com o retorno dos EUA à OMS, trincheira global contra a covid. Retomou, também, os compromissos com o Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, formalmente denunciado pelo antecessor.
Carreira solo
O ministro Ernesto Araújo, avesso ao sistema multilateral — que rejeita como “globalismo” —, não apenas rechaçou recomendações e apelos da agência sanitária das Nações Unidas. Em parceria com Bolsonaro, afastou o país da articulação geopolítica empreendida pelo Brics. O bloco tem um trio de grandes fabricantes de farmacêuticos, completado pela Rússia, e uma dupla com forte demanda, em que nos acompanha a África do Sul.
Na ausência de uma estratégia concatenada com parceiros múltiplos em situação complementar, o Brasil negocia vacinas em bases bilaterais com diferentes fornecedores. Encontra filas longas e opera, em cenário altamente competitivo, sem se apresentar ao mundo com uma direção clara e distinguível para as contrapartes.