EUA

'A democracia prevaleceu'

Ao ser empossado como o 46º presidente, Joe Biden, 78 anos, defende a unidade, promete governar para todos e apela ao multilateralismo. No primeiro dia de governo, readere ao Acordo de Paris e à OMS e suspende financiamento de muro na fronteira

Unidade, dignidade, respeito, verdade, liberdade. À sombra do domo do Capitólio, duas semanas depois da invasão à sede do Legislativo, as palavras ressoaram como promessas no discurso de posse de Joe Biden, o 46º presidente dos Estados Unidos. Durante 21 minutos, o democrata, de 78 anos, fez uma defesa da democracia representativa, jurou governar para todos os americanos e acenou com o retorno ao multilateralismo. “Nós aprendemos novamente que a democracia é preciosa. A democracia é frágil. Neste momento, meus amigos, a democracia prevaleceu”, declarou o novo comandante-em-chefe da nação, ante os antecessores Barack Obama, Bill Clinton e George W. Bush, além de congressistas e juízes da Suprema Corte.
Ele citou a ascensão do extremismo político, da supremacia branca e do terrorismo doméstico como ameaças que serão derrotadas. “Restaurar a alma e garantir o futuro da América exige mais do que palavras. Requer a mais elusiva de todas as coisas em uma democracia, a unidade”, afirmou. O agora ex-presidente Donald Trump deixou Washington rumo ao resort de Mar-a-Lago, na Flórida, duas horas antes da posse (leia na página 15).
Pouco depois das 17h (19h em Brasília), Biden foi até o Salão Oval da Casa Branca e encontrou uma carta de Trump — segundo ele, muito generosa — sobre a mesa. “Não há momento para começar como hoje”, disse a jornalistas, antes de assinar um pacote de 15 decretos executivos, alguns dos quais revertem decisões tomadas por Trump. Entre os mais importantes, estão o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, um tratado assinado por 195 países; a readesão à Organização Mundial da Saúde (OMS); a suspensão do financiamento do muro de segurança construído na fronteira com o México; o fim da proibição à entrada nos EUA de viajantes oriundos de países muçulmanos; e a obrigatoriedade do uso de máscaras em prédios federais.
Enquanto isso, Kamala Harris (leia na página 14) — a primeira vice-presidente negra e descendente de imigrantes — dava juramento a dois senadores democratas, consolidando o controle governista do Congresso.
“Vamos combater as mudanças climáticas de uma forma que não tínhamos tentado até agora”, avisou Biden, depois de assinar os decretos. A decisão foi celebrada pelo presidente francês, Emmanuel Macron: “Somente juntos poderemos enfrentar os desafios de nosso tempo. E juntos poderemos enfrentar o desafio climático, agindo pelo bem de nosso planeta”. O secretário-geral da ONU, António Guterres, saudou o gesto e pediu a Biden a adoção de um plano “ambicioso” contra o aquecimento global.
“É um grande alívio para mim e para todos ver um novo presidente que reconhece a ciência e o tema essencial das mudanças climáticas”, afirmou ao Correio Kevin Trenberth, cientista aposentado do Centro Nacional de Pesquisas Atmosfericas (NCAR), no Arizona. “A readesão ao Acordo de Paris é importante. Os EUA, como o maior emissor de dióxido de carbono, têm a obrigação moral e ética de afastar o mundo da queima de combustíveis fósseis.”

Juramento

Às 11h49 (13h40 em Brasília), ao prestar juramento, com a mão esquerda sobre uma Bíblia datada de 1893, Biden não escondeu a emoção. “Eu, Joseph Robinette Biden Jr., solenemente juro que executarei fielmente o cargo de presidente dos Estados Unidos e farei o melhor do meu dever para preservar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos. Que Deus me ajude”, afirmou, ao repetir as palavras pronunciadas pelo presidente da Suprema Corte, o juiz John G. Roberts Jr. Pouco antes, a cantora Lady Gaga interpretou o hino nacional dos EUA.
“Hoje, celebramos a vitória não de um candidato, mas de uma causa, a causa da democracia (...) A vontade do povo foi ouvida”, declarou Biden, no discurso de posse. Ele reconheceu que a pandemia deixou milhões de desempregados e fechou centenas de milhares de empresas. “No trabalho que temos pela frente, vamos precisar uns dos outros.” Também ressaltou que “podemos oferecer justiça racial e fazer da América, mais uma vez, a principal força do bem no mundo”. O democrata sublinhou que governará “para todos os americanos”. “A política não tem que ser um fogo terrível, destruindo tudo.” Após a solenidade, Biden, Obama, Bush e Clinton visitaram o Cemitério Nacional de Arlington e depositaram uma coroa de flores sobre o Túmulo do Soldado Desconhecido.
Professor de ciência política do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Charles H. Stewart III admitiu à reportagem que o tema da unidade era óbvio e avaliou o discurso como desprovido de uma agenda política vibrante. “Os EUA estão divididos ideologicamente; um discurso denso correria o risco de alienar grande número de cidadãos no início do governo”, avaliou. Por sua vez, Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM São Paulo, disse ao Correio que a retórica de Biden envolve a necessidade de reconduzir a nação à normalidade e construir consensos. “A condenação que ele fez aos supremacistas brancos e ao terrorismo doméstico mostra o empenho em se voltar contra o radicalismo e a polarização”, observou.
Diretor do Centro por uma Nova Segurança Americana (CNSA, em Washington) e ex-conselheiro do senador John McCain, Richard Fontaine aponta o apelo à unidade como o principal do discurso. “Isso não me surpreendeu, mas foi muito bem-vindo”, afirmou à reportagem. No âmbito da política externa, ele prevê uma abordagem menos transacional por parte da Casa Branca. “Em vez de ‘América em primeiro lugar’, de Trump, Biden deverá unir-se a aliados, em uma causa comum. O novo governo deseja ser multilateral e dar ênfase à democracia e aos direitos humanos no exterior.”
Lawrence Gostin, professor de medicina da Universidade Johns Hopkins e da Universidade Georgetown e especialista em direito de saúde pública, sublinhou o compromisso de Biden com a justiça social, a igualdade e o fim da discriminação baseada na raça, no gênero, na religião e na orientação sexual. “Ao reingressar na OMS, readeri ao Acordo de Paris e rescindir a proibição de viagens sobre países de minorias muçulmanas, os EUA afirmam sua liderança global em saúde. Agora, vamos retornar a um papel de liderança na comunidade de nações”, comemorou, por e-mail.


» As primeiras ações no Salão Oval da Casa Branca

Saiba quais as decretos executivos assinados por Joe Biden pouco depois da posse


Retorno ao Acordo de Paris
O pacto assinado em 2015 por 195 países busca mitigar o aquecimento global e impor metas climáticas ambiciosas. O ex-presidente Donald Trump abandonou o acordo em 4 de novembro de 2019.

Volta à Organização Mundial da Saúde
Em julho passado, durante a pandemia da covid-19, Trump rompeu com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao acusar a entidade de agir em conluio com a China.

Obrigatoriedade de máscaras
Com o decreto, passa a ser compulsório o uso de máscaras dentro de prédios públicos federais nos EUA. A medida visa reduzir a transmissão da covid-19.

Imigração
Biden suspendeu o financiamento da construção do muro na fronteira com o México e reverteu a proibição de entrada nos EUA de viajantes de países muçulmanos.