Carla Akotirene, pesquisadora sobre feminismo negro e interseccionalidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), lembra que é preciso mais do que a ascensão de uma mulher negra a um cargo poderoso para efetivar políticas identitárias. “Logicamente, do ponto de vista estrutural, os Estados Unidos não serão conduzidos pelas vontades políticas da população negra imigrante da periferia, simplesmente porque a política de identidade valoriza uma mulher negra. É importante que ela favoreça a identidade política, que enfrente o racismo, o patriarcado, o capitalismo e o xenofobismo. É vitorioso, sim, mudar esse verniz branco hegemônico na estrutura de poder, mas é fundamental que as pessoas que passem por ali lutem contra as violências”, diz Carla.
Além disso, ela lembra, Kamala Harris tem um histórico de posições conservadoras no que diz respeito ao encarceramento em massa, especialmente durante sua passagem pela procuradoria da Califórnia. Carla aponta que é preciso não esquecer as forças em jogo na cena política. “O Senado também tem suas correlações de força. Ela não é uma mulher negra representando uma vontade partidária, porque a vontade partidária é de homens brancos hegemônicos. A correlação de forças vai pesar ainda mais para ela. Com certeza, forças hegemônicas vão tentar descredenciar a imagem dela”, aponta a pesquisadora.
Rebecca Abers, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), aponta que Kamala foi escolhida estrategicamente por conta da origem multirracial em um momento no qual a questão racial ganhou mais centralidade. “Havia uma exigência muito mais ampla na população, na sociedade, que extrapolou a própria população negra, para mais justiça racial. Isso, certamente, foi importante. Ela é uma pessoa que tem esse caráter simbólico e de agregar uma agenda que muito se opõe ao fascismo, à supremacia branca, componente muito forte do imaginário do Trump.”
No entanto, esse perfil não é suficiente para esperar que leve essa agenda para a administração de Joe Biden. “Ela é uma pessoa contraditória porque foi promotora. Kamala vem dos que colocam as pessoas na cadeia e, como uma das questões centrais, o grande tema surgido no ano passado foi a violência policial contra os negros”, explica.
Para a aposentada Yanick Georges, 74 anos, moradora de Washington, Kamala pode ficar de mãos atadas. “Claro, como mulher, acho ótimo ter uma mulher vice-presidente. O fato de ser negra é melhor ainda”, comenta. “Mas não acho que possa fazer muito. Acho que vai tentar, mas creio que não vai conseguir, por causa do clima em que está o país. Além disso, tivemos um presidente negro por oito anos e ele não conseguiu fazer muito.”
A recepcionista Gerry Hayes, 73 anos, também moradora de Washington, está mais esperançosa e acredita que Kamala pode contribuir muito com as populações negras e mais pobres dos EUA. “Meu sentimento em relação a ela é maravilhoso, é a primeira vice-presidente de cor, e acredito que pode, nos próximos anos, tornar-se a primeira presidente de cor. Acho que ela pode fazer muito pelas pessoas de cor, porque, em sua posição, ela pode ajudar a obter os recursos que nós precisamos, além de saber o que nós necessitamos”, diz Gerry.