Quando jurou fidelidade à Constituição dos Estados Unidos, no início da tarde de ontem, a democrata Kamala Harris, 56 anos, teve sob as mãos duas Bíblias. Uma pertencia a Regina Shelton, vizinha da ex-senadora democrata em São Francisco (Califórnia) e dona de uma creche residencial — onde Kamala ficava quando a mãe, Shyamala Gopalan, dedicava-se às pesquisas sobre câncer de mama, no laboratório em que trabalhava. A outra pertencia a Thurgood Marshall, o primeiro afro-americano a servir na Suprema Corte. Quem administrou o juramento a Kamala foi Sonia Sotomayor, a única mulher latina a ocupar um posto na Suprema Corte. Foram homenagens simbólicas para a vice-presidente dos Estados Unidos, que também carrega o título de primeira em várias frentes.
Filha de imigrantes — a mãe veio da Índia e o pai, da Jamaica —, Kamala é a primeira mulher negra e de origem asiática a assumir o segundo posto mais importante da Casa Branca. Também foi a primeira procuradora geral afro-americana da Califórnia e, até conquistar a cadeira no Senado pelo mesmo estado, nenhuma mulher negra tinha chegado ao cargo.
Agora, além de responder pela vice-presidência, Kamala também vai liderar o Senado e será dona do voto de Minerva em uma casa dividida entre 50 republicanos e 50 democratas. O posicionamento de Kamala poderá ser decisivo na votação do impeachment de Donald Trump — o processo continua a correr, mesmo com o republicano fora da Casa Branca. Ela será crucial nas nomeações de juízes da Suprema Corte e na aprovação do plano de estímulo de US$ 1,9 trilhão (cerca de R$ 10 trilhões) para recuperar a economia do país, golpeada pela covid-19. Para analistas, Kamala também deverá ter um papel importante na política externa.
Durante o discurso da vitória, em novembro, ela celebrou as “primeiras vezes” com a afirmação de que não serão as últimas. Mesmo com o arcabouço de uma carreira construída de forma brilhante, foi a roupa vestida pela vice-presidente em foto para a capa da revista Vogue que causou furor na imprensa americana, na semana passada. Com calças skinny, tênis Converse, camiseta branca e uma jaqueta, Kamala aparece em um fundo com tecidos verde e rosa, um tanto bagunçados, mas que evocam as cores de sua fraternidade na Universidade Howard, onde estudou direito.
A opção editorial da Vogue, que produziu uma alternativa com a vice vestindo um terninho azul claro, de braços cruzados em fundo neutro, foi vista como desrespeitosa e provocou reações nas redes sociais e na própria mídia americana que raramente um homem vestido com um terno qualquer despertaria. Talvez esteja aí mais um sinal do que representa ter uma mulher de origem estrangeira na vice-presidência de um país convulsionado por polarizações políticas em um cenário extremamente racializado.
Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em gênero e democracia, Flávia Biroli repara que a chegada de Kamala Harris à vice-presidência, neste momento, precisa ser vista de uma perspectiva particular. “Ter uma mulher como ela na vice-presidência é mais forte num contexto de disputa eleitoral em que, do outro lado, há alguém abertamente adepto de visões racializadas do país, e que naturaliza as hierarquias raciais e de gênero”, explica Flávia.
Para ela, Trump representava, de maneira rude e gritante, algo que faz parte do cotidiano da sociedade americana e manifesta-se na política em setores conservadores. “É muito significativo a gente pensar que, num contexto como esse, em um dos cargos de maior relevância do país, se tenha uma mulher não branca. Esse aspecto é tão simbólico, porque a participação das mulheres continua bloqueada, e por falarmos de um contexto em que situações que racializam estão muito fortes”, explica.
*Colaborou Fabíola Góis