Quando depositar a mão esquerda sobre a Bíblia — relíquia da família desde 1893 — e se tornar o 46º presidente dos Estados Unidos, nas escadarias do Capitólio, Joe Biden assumirá o compromisso de trabalhar pela reunificação de um país dividido pelo ódio e pelas divergências políticas. Uma nação enlutada pela pandemia da covid-19, que ultrapassou, ontem, 400 mil mortes. O democrata de 78 anos, 49 deles dedicado à política, não pretende perder tempo: ainda hoje deverá assinar um pacote de decretos executivos para reverter medidas polêmicas anunciadas pelo republicano Donald Trump. A posse será diferente das cerimônias que envolveram todos os antecessores. O risco de manifestações violentas ou mesmo de um atentado à vida de Biden levou à militarização de Washington. Mais de 25 mil agentes da Guarda Nacional patrulham pontos sensíveis da capital, à sombra da invasão ao complexo do Congresso, há duas semanas. No National Mall, a esplanada que se estende do Capitólio ao Lincoln Memorial, a multidão dará lugar a 200 mil pequenas bandeiras dos EUA, as quais simbolizarão o povo.
A previsão é de que, a partir de hoje, a Casa Branca se distancie da política “America First” (“Estados Unidos em primeiro lugar”), priorize a construção de alianças e faça acenos positivos ao Irã. Biden prometeu que, “no primeiro dia de mandato”, colocaria os EUA de volta ao Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. Em um simbólico gesto de conciliação, ele convidou líderes do Congresso, republicanos e democratas, a acompanhá-lo em uma missa a ser celebrada na manhã de hoje, na Catedral de São Mateus, em Washington.
Logo após desembarcar na capital, o futuro presidente e a vice, Kamala Harris, participaram de um tributo às vítimas da covid-19, diante do Memorial Lincoln. “Para curar, nós devemos lembrar. (...) É assim que curamos. É importante fazer isso como nação. Entre o pôr do sol e o crepúsculo, vamos iluminar a escuridão para lembrar de tudo o que perdemos”, disse Biden, enquanto velas eram acesas dos dois lados do espelho d’água do National Mall. Kamala fez um discurso no mesmo tom. “Começamos, nesta noite, o período de cura, juntos”, declarou a primeira mulher negra e de ascendência indiana a ocupar o posto.
Ainda em Delaware, antes de seguir para Washington, Biden não conteve a emoção. Enxugou os olhos ante dezenas de convidados, durante homenagem da Guarda Nacional ao filho Beau, morto de câncer em 2015. “É profundamente pessoal que nossa jornada para Washington comece aqui. Só lamento que ele não esteja aqui. Porque deveríamos estar o apresentando como presidente”, desabafou. “Desculpe a emoção. Mas, quando eu morrer, Delaware estará escrito em meu coração.” Em vídeo nas redes sociais, Trump se despediu da nação.
Desafios
Robert B. Talisse, professor de filosofia da Vanderbilt University (em Nashville), aponta dois desafios de Biden, no processo de cura e unificação do país. “O primeiro deles é restaurar um governo competente e transparente. Por quatro anos, os EUA sofreram quatro anos sob uma liderança cujo propósito era a reeleição. A agenda política de Trump foi impulsionada pela meta de cumprir promessas de campanha — a construção do muro na fronteira com o México, a proibição de viagens e ganhos no mercado de ações. Ele ignorou a interferência estrangeira nas eleições, o terror doméstico, a covid-19 e o colapso econômico. A nação está em desordem”, disse ao Correio o autor de Overdoing democracy e especialista em polarização política.
Talisse aponta que Biden terá a missão de destacar os valores democráticos, após uma gestão que dividiu o povo. “O novo presidente precisa reafirmar a base de princípios da democracia constitucional, dentro da ideia de igualdade política. Espero que a mensagem seja central no discurso de posse. Não devemos perder de vista que as divisões também têm a ver com o fato de que ampla porção do Partido Republicano parece devotada à ideia de que a vitória de Biden é fraudulenta.”
Para Hunter Baker, cientista político da Union University (em Jackson, Tennessee) e um dos diretores da Braver Angels (organização que luta contra a polarização política), Biden terá uma “chance tremenda”. “Trump estabeleceu um padrão muito baixo para a promoção da paz, gerou calor e paixão. Tudo o que Biden precisa fazer é ser calmo, conciliador e evitar mostrar-se agressivo com suas políticas”, disse ao Correio.