A única mulher no corredor da morte federal dos Estados Unidos, onde estão os presos condenados à pena capital em julgamentos em tribunais federais, deverá ser executada nesta semana, por injeção letal, na penitenciária de Terre Haute, em Indiana.
A execução de Lisa Montgomery, de 52 anos, marcada para terça-feira (12/1), será a primeira de uma mulher levada adiante pelo governo federal americano em quase 70 anos. O último caso do tipo foi o de Bonnie Brown Heady, executada em 1953 na câmara de gás pelo sequestro e morte de um menino de seis anos de idade.
O crime cometido por Montgomery chocou os EUA e é descrito pelo Departamento de Justiça como "especialmente hediondo": em 2004, ela matou uma grávida, cortou sua barriga e sequestrou o bebê.
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Mas advogados que estudaram o caso depois da condenação apontaram falhas na defesa e dizem que, se o júri soubesse na época da extensão dos abusos sofridos por Montgomery, incluindo estupros desde a infância, e das evidências de seus problemas mentais, ela talvez não tivesse sido sentenciada à morte.
"Se as pessoas entendessem como ela chegou ao ponto de cometer esse crime, compreenderiam que ela sofre de doença mental grave e que essa doença é fruto do trauma que ela viveu", diz à BBC News Brasil a professora de Direito Leigh Goodmark, da Universidade de Maryland, que é especialista em casos de violência doméstica.
"O abuso e a tortura a que ela foi submetida não são desculpa para nada, mas são centrais para entender por que ela fez o que fez", afirma Goodmark.
Sua defesa entrou com pedido de clemência e pede que o presidente Donald Trump transforme a pena de Montgomery em prisão perpétua.
O crime
Montgomery tinha 36 anos quando, em 16 de dezembro de 2004, dirigiu por quase três horas de sua casa em Melvern, no Kansas, até Skidmore, uma cidadezinha de menos de 300 habitantes na zona rural do Estado vizinho de Missouri.
Seu destino era a casa de Bobbie Jo Stinnett, uma jovem de 23 anos de quem ela havia se aproximado pela internet. Stinnett e o marido, Zeb, de 24 anos, esperavam o primeiro filho, e ela estava no oitavo mês de gestação.
Eles eram criadores de cães, e Montgomery usou nome e e-mail falsos para marcar a visita, sob o pretexto de comprar um filhote.
Ao anunciar o agendamento da execução de Montgomery, em outubro do ano passado, o Departamento de Justiça detalhou o crime desta maneira: "Dentro da residência, Montgomery atacou e estrangulou Stinnett, que estava grávida de oito meses, até que a vítima perdeu a consciência. Usando uma faca de cozinha, Montgomery então cortou o abdome de Stinnett, o que fez com que ela retomasse a consciência. Uma luta se seguiu, e Montgomery estrangulou Stinnett até a morte."
Montgomery usou uma corda para estrangular Stinnett. Ela então removeu o bebê do corpo da mãe e o levou de volta à casa que dividia com o marido, Kevin, no Kansas. Ela tentou fingir que o bebê era seu.
O corpo de Stinnett foi encontrado horas depois por sua mãe, Becky Harper. "É como se ela tivesse explodido", disse Harper, aos prantos, na ligação ao serviço de emergência. "Há sangue por todos os lados."
No dia seguinte, a polícia chegou à casa de Montgomery e a encontrou com o bebê, uma menina que, apesar de ter sido retirada do ventre de maneira prematura, sobreviveu.
Montgomery confessou o crime e foi presa, e a menina foi entregue a Zeb. Ela foi criada pelo pai, de quem recebeu o nome de Victoria Jo.
O julgamento
A gravidade do crime e a culpa de Montgomery nunca estiveram em dúvida, e em outubro de 2007 ela foi condenada por sequestro e assassinato. Depois da condenação, o júri ainda precisava decidir qual seria sua sentença.
Os jurados ouviram depoimentos da mãe de Stinnett, que descreveu a filha como uma pessoa inteligente e divertida. O marido, Zeb, falou do entusiasmo do casal ao planejar a chegada da primeira filha e disse que a morte da mulher "devastou" sua vida.
Nos EUA, em casos passíveis de pena de morte, a equipe de defesa costuma apresentar nesta fase do julgamento evidências que possam mitigar a sentença, como histórico de abusos, problemas mentais ou outros aspectos que possam convencer o júri a poupar o réu da morte.
Mas advogados que se debruçaram sobre o caso anos depois dizem que a defesa de Montgomery, liderada por um defensor público sem experiência em casos de pena capital e por um advogado que teve vários outros de seus clientes condenados à morte, foi marcada por falhas.
A teoria apresentada ao júri, de que ela sofria de pseudociese, doença mental rara em que a mulher acredita estar grávida e exibe sintomas de gravidez, não batia com os fatos. A defesa não mostrou evidências cruciais da exploração sexual e torturas sofridas por Montgomery desde a infância e nem explicou o impacto disso em seu comportamento.
A acusação descreveu o que foi apresentado como "desculpa de abuso". Depois de apenas cinco horas de deliberação, os jurados recomendaram por unanimidade a pena de morte.
Os abusos
Montgomery cresceu em uma família disfuncional, marcada por pobreza, violência, dependência de drogas e doença mental, na qual as crianças eram espancadas constantemente.
Seu pai abandonou a família quando ela era pequena. Sua mãe, Judy, casou seis vezes e teve vários outros parceiros. Ela é descrita em documentos sobre o caso como negligente e violenta.
A meia-irmã de Montgomery, Diane, quatro anos mais velha, começou a ser estuprada aos oito anos de idade, inicialmente por um amigo da mãe. Elas dormiam no mesmo quarto, e Montgomery, aos quatro anos de idade, assistia ao abuso sofrido pela irmã.
Assistentes sociais acabaram retirando Diane da casa, mas não Montgomery. A partir dos 11 anos de idade, Montgomery começou a ser abusada sexualmente pelo padrasto.
Os estupros aconteciam em seu quarto, e ele ameaçava estuprar sua irmã menor se ela resistisse e matar a família inteira se ela contasse a alguém. Em algumas ocasiões, ele batia com a cabeça da menina no chão de concreto enquanto a estuprava.
A família mudava de endereço frequentemente. Montgomery viveu em 17 lugares diferentes em seus primeiros 14 anos de idade. Quando se mudaram para um trailer em uma área isolada, ao final de uma rua sem saída, o padrasto ergueu um cômodo pequeno ao lado, onde podia estuprar a enteada sem ser perturbado.
Ao descobrir sobre o abuso, Judy culpou a filha. Quando Montgomery tinha 15 anos, começou a ser estuprada regularmente por vários outros homens, às vezes ao mesmo tempo, que eram levados ao local pela mãe e pelo padrasto, em troca de dinheiro. Segundo documentos sobre o caso, muitas vezes os homens urinavam na menina depois do ataque.
Ao longo dos anos, várias pessoas ficaram sabendo dos estupros, mas ninguém nunca reportou ou denunciou os abusos. Montgomery chegou a contar o que acontecia a um primo que era policial. Segundo documentos, ele disse que ela "chorava e tremia" enquanto relatava os estupros, mas ele também não denunciou o crime.
Vida adulta
Quando Montgomery tinha 18 anos de idade, foi pressionada pela mãe a casar-se com Carl Boman, filho de um namorado de Judy. Documentos sobre o caso dizem que Boman era abusivo. Ela teve quatro filhos em cinco anos.
Depois que Montgomery teve o quarto filho, sua mãe a pressionou a se submeter a esterilização. Ela se separou de Boman e depois casou-se pela segunda vez, com Kevin Montgomery.
A saúde mental de Montgomery continuou a se deteriorar com o passar dos anos e, segundo psicólogos e advogados que estudaram o caso, seu comportamento passou a ficar cada vez mais errático e ela não conseguia cuidar dos filhos nem de si mesma.
Dois dias antes do crime, Boman, o ex-marido, entrou na Justiça para obter a custódia de dois dos filhos do casal. Montgomery havia dito ao novo marido que estava grávida, e Boman sabia que isso era impossível, já que ela havia sido esterilizada.
Ele ameaçou expor a mentira e usar isso para garantir a guarda dos filhos. Não era a primeira vez que Montgomery fingia estar grávida.
Os danos
A psicóloga Katherine Porterfield, especializada no tratamento de sobreviventes de tortura e trauma, entrevistou Montgomery por vários dias em 2016, como parte do processo de apelação, e disse que o impacto do abuso foi enorme e que seu caso é um dos mais severos de dissociação da realidade que já viu.
No relato de suas conclusões, Porterfield escreveu que "os tipos de eventos traumáticos que Lisa viveu são capazes de gerar danos no desenvolvimento e personalidade" de uma pessoa.
Documentos sobre o caso revelam que Judy abusou de álcool durante a gravidez, o que provocou danos orgânicos no cérebro de Montgomery. Além desses danos apresentados desde o nascimento, Montgomery também sofreu lesões cerebrais ao longo dos anos de abuso.
Especialistas que estudaram seu caso dizem que os traumas sofridos desde a infância exacerbaram sua predisposição genética para doenças mentais. Exames de ressonância magnética e tomografias por emissão de pósitrons mostram danos em seu cérebro.
Segundo o Centro sobre a Pena de Morte da Faculdade de Direito da Universidade de Cornell, desde que foi presa, ela foi diagnosticada com uma série de problemas mentais e neurológicos, entre eles transtorno dissociativo, transtorno de estresse pós-traumático complexo (TEPT-C), transtorno bipolar, epilepsia do lobo temporal e depressão.
A execução
Diversas entidades de defesa de direitos humanos se manifestaram contra a execução, entre elas a organização nacional de direitos civis União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que pediu a suspensão da execução até que possa analisar o caso.
Segundo o Centro sobre a Pena de Morte da Universidade e Cornell, "mais de uma dúzia de mulheres cometeram crimes semelhantes ao redor do país, e nenhuma além de Lisa foi condenada à morte".
A execução de Montgomery estava inicialmente marcada para 8 de dezembro de 2020, mas foi adiada após seus advogados contraírem covid-19. Ela será a 11ª pessoa executada pelo governo federal durante o mandato de Donald Trump.
Antes de Trump, o governo federal não executava ninguém desde 2003. Os 10 presos executados em 2020 representam o maior número em um único ano em mais de um século, desde 1896.
As execuções federais nos EUA são reservadas a determinados tipos de crimes julgados em tribunais federais e costumam ser mais raras do que as execuções estaduais, que são aplicadas em crimes julgados por tribunais locais nos 28 Estados que permitem a pena de morte.
Montgomery será executada oito dias antes da posse do presidente eleito, Joe Biden, que já anunciou sua intenção de acabar com a pena de morte federal. Outros dois prisioneiros também têm execução marcada para esta semana, antes de Trump deixar o poder.
Os pedidos para que Trump seja misericordioso não são unânimes. De acordo com Gallup, embora o apoio à pena de morte nos EUA esteja em seu nível mais baixo em mais de 50 anos, 55% dos americanos ainda acreditam que a medida é uma punição apropriada para assassinato. Na cidade de Skidmore, onde Lisa Montgomery cometeu seu crime, esse apoio à pena de morte é ainda mais palpável.
"Bobbie merecia estar aqui conosco hoje. A família de Bobbie merecia", diz Meagan Morrow, uma colega de escola de Stinnett. "E Lisa merece pagar."
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