Um homem branco, musculoso e tatuado com o torso nu, a cabeça envolta por chifres e pelos de bisão, o rosto pintado com as cores da bandeira dos EUA e as pernas cobertas por tecido leve e da cor da pele se tornou o ícone da invasão à sede do congresso dos Estados Unidos, na quarta-feira (6). Ele não era o único vestido assim.
Mas o que pareceu para muitos uma estratégia isolada para chamar atenção de fotógrafos também pode guardar as ideias um movimento com objetivos contraditórios, radicais e violentos - da ode ao confronto físico e à guerra, ao ódio contra mulheres, gays e suas conquistas por direitos iguais na sociedade.
Quem explica é a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Guimarães, uma professora da Universidade de Bath, no Reino Unido, que pesquisa a masculinidade e dedicou parte de suas leituras recentes ao chamado "tribalismo masculino", ou "masculinismo".
"O princípio dos grupos tribalistas masculinos, ou masculinistas, é primeiro um ódio às mulheres, uma ideia de que as mulheres são objetos para reprodução humana simplesmente. Muitos dos grupos masculinistas norte-americanos defendem que as mulheres têm que ser caçadas, literalmente, e que nós só servimos para reprodução", diz.
"Diferente de machismo, é uma repulsa a mulher. É outro nível de machismo."
Para os adeptos, a vestimenta "tribal" funcionaria como uma espécie de elogio aos primórdios da humanidade, antes de consensos globais em torno de paz, igualdade, direitos humanos e conquistas de mulheres e grupos LGBTs.
As primeiras referências acadêmicas ao grupo surgiram há décadas, mas se tornaram mais frequentes nos anos 2000, graças a debates em fóruns anônimos e na deep-web.
Desde 2016, ano de eleição de Donald Trump, essas ideias vêm ganhando força em meio a uma complexa teia de novos grupos impulsionados por negacionistas da ciência e teorias de conspiração, como a chamada alt-right, ou "direita alternativa", e, mais recentemente, o QAnon (veja mais abaixo).
Caça e guerra
Além do exemplo que ficou mais famoso, diversos outros manifestantes trumpistas desfilaram visuais "tribalistas".
Um deles foi fotografado vestindo algo semelhante a pele de urso sob um retrato de Charles Sumner, importante senador que defendeu a abolição da escravidão no século 19. Na mão esquerda, o militante segurava um cajado. Na direita, um escudo policial.
"Os masculinistas não acham que a mulher tenha um papel na sociedade, eles são mais extremos. Os cristãos nos EUA vêm um papel nas mulheres de cuidar da família. Os masculinistas as odeiam."
Como acontece em outros grupos sociais, o termo engloba um universo heterogêneo de adeptos. Em comum a todos os grupos, conta a professora, há "um elogio ao homem viril que se acredita que se perdeu nas últimas décadas".
"Eles reinvidicam uma virilidade da caça, da guerra. Alguns são mais religiosos, outros não são. Há grupos que se identificam com romanos, com espartanos, outros por exemplo reivindicam uma estética viking, ou se identificam com grupos indígenas norte-americanos. Ou, no caso do sujeito de Washington, que estava com uma roupa de bisão norte-americano", explica Pinheiro-Guimarães.
"Roupas de couro, corpo tatuado, isso perpassa a todos", diz.
"É um universo que remete à conquista, à invasão, a capturar mulheres para estuprar, botar em cativeiro para reprodução, em um cenario totalmente distópico em que os homens precisam estar entre homens para resgatar sua virilidade perdida."
Perigo
Entre os principais riscos associados ao grupo, a professora destaca como "mais evidente e preocupante e imediato a violência contra as mulheres".
"O feminicídio é inspirado na ideia de posse de mulheres, que é um fenômeno que sempre existiu, mas que é estimulado por um contexto político", diz.
"Outra consequencia imediata é a perseguição de pessoas que estudam gênero e sexualidade,como a professora Lola (Aronovich, da Universidade Federal de Fortaliza) e a Debora Diniz (das universidades de Brasilia e Brown, nos EUA".
Ambas são vítimas de constantes ataques e ameaças online vindo de grupos radicais identificados com masculinistas brasileiros, alguns investigados pela polícia.
Muitos dos vídeos que circulam há anos em português - algo mais frequente, segundo a professora, desde a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.
Em um dos filmes, um homem vestido de gladiador surge sobre um cavalo dizendo que o Brasil precisa se librar de ameaças comunistas e feministas.
Em outro, um paulista com roupas que imitam gregos de Esparta pede que homens lutem por sua virilidade.
Em fóruns abertos, grupos de brasileiros vão além e chegam a defender abertamente estupros e assassinatos de mulheres.
QAnon
Após ter fotos estampadas em jornais no mundo inteiro, o homem que viralizou após a invasão de ao congresso dos EUA em meio aos debates para a certificação da eleição de Joe Biden foi identificado em redes sociais.
Conhecido como "Q Shaman", Jake Angeli, de 32 anos, vive no Arizona e é um conhecido influencer da extrema-direita americana.
Vestindo sempre referências a povos tradicionais indígenas dos EUA ou a vikings, ele já foi fotografado em militando em protestos a favor de Donald Trump - ou fazendo oposição em atos organizados por grupos como o Black Lives Matter.
Nas redes, ele se tornou um dos porta-vozes do movimento Qanon, uma teoria ampla e completamente infundada que diz que o presidente Trump estaria travando uma guerra secreta contra os pedófilos e adoradores de Satanás do alto escalão do governo, do mundo empresarial e da imprensa.
Seus apoiadores vaticinam que esta luta levará a um dia de ajuste de contas, em que pessoas proeminentes, como a ex-candidata presidencial Hillary Clinton, serão presas e executadas.
Adeptos do movimento impulsionam hashtags e coordenam ataques aos que consideram inimigos — políticos, celebridades e jornalistas que eles acreditam, sem qualquer prova, estar encobrindo pedófilos.
Não são apenas mensagens ameaçadoras online: vários apoiadores do movimento foram presos após fazerem ameaças ou tomarem medidas concretas na "vida real".
Em um caso notável em 2018, um homem fortemente armado bloqueou uma ponte sobre a Represa Hoover. Mais tarde, Matthew Wright se declarou culpado de uma acusação de terrorismo.
Anti-gays que fazem sexo com homens
O principal ícone dos tribalistas masculinos ou masculinistas é o americano Jack Donovan, autor de livros e vídeos reproduzidos milhões de vezes online.
Segundo Pinheiro-Machado, Donovan e seus seguidores ilustram o eixo mais extremo dos masculinistas.
"Não se consideram gays, mas mantém relações sexuais com homens. isso é um aspecto paradigmático e extremo dos masculinistas", diz.
"Há uma devoção e um amor à estética masculina", continua a professora. "Mas a interpretação de uma identidade gay ou homoerótica seria um sinal de fraqueza. Então, é um ato sexual bruto em devoção a esse corpo que é a própria imagem. Mas sem associar isso ao feminino ou a uma identidade LGBT."
Em seu livro Androfilia (2006), Donovan faz ataques à cultura gay e a associa a "inimigos da masculinidade". Ao mesmo tempo, ele classifica seu desejo por homens como uma "defesa a um ideal masculino".
As teses do autor são descritas por críticos como preconceituosas e ameaçadoras, especialmente para homens gays que não têm perfis hipermasculinos - ou são descritos como "afeminados".
Segundo Matthew Lyons, um dos autores do livro Key Thinkers of the Radical Right (Pensadores-chave da Direita Radical, em tradução livre), publicado em 2019 pela editora da Universidade de Oxford, o tribalismo masculino de Donovan também parte do princípio de que gênero seria algo "natural e imutável" - em oposição direta à existência de pessoas transexuais.