O Congresso dos Estados Unidos se preparava para certificar a vitória do democrata Joe Biden nas eleições de 3 de novembro, quando simpatizantes do presidente Donald Trump invadiram o Capitólio e forçaram a retirada imediata do atual vice, Mike Pence, e dos legisladores. Uma das democracias mais sólidas do planeta assistiu, ontem, ao que até republicanos qualificaram de “tentativa de golpe”. Enquanto o caos se instalava na sede do Legislativo, Trump usava o perfil no Twitter para criticar o seu vice. “Mike Pence não teve a coragem de fazer o que deveria ter sido feito para proteger nosso país e nossa Constituição. (…) Os EUA exigem a verdade!”, escreveu o magnata republicano, ao criticar o vice por não se opor à confirmação da vitória democrata.
A deputada democrata Ilhan Omar anunciou que redigiria os artigos de impeachment. “Trump deve ser cassado pela Câmara dos Representantes e destituído pelo Senado dos Estados Unidos. Não podemos permitir que ele permaneça no cargo. É uma questão de preservar nossa República”, defendeu, por meio do Twitter.
Com o semblante tranquilo e a voz pausada, Biden fez um pronunciamento à nação em que denunciou um “ataque sem precedentes” à democracia norte-americana. “As cenas de caos na capital não refletem os verdadeiros Estados Unidos, não representam quem somos”, advertiu o presidente eleito, que governará com maioria nas duas casas do Congresso, depois da confirmação da vitória dos democratas Jon Ossoff e Raphael Warnock para as cadeiras do Senado.
“O que o mundo assiste não é um protesto, é uma insurreição. (…) Estou, genuinamente, chocado e entristecido com o fato de que, nossa nação, há tanto tempo farol da democracia, tenha chegado a um momento tão sombrio”, declarou Biden. “Palavras de um presidente importam. Não importa o quão bom ou ruim ele seja. No mínimo, palavras devem inspirar. No pior dos casos, elas devem incitar. Portanto, peço ao presidente Trump que vá à rede de televisão nacional, cumpra com o juramento de defender a Constituição e exija o fim deste cerco à capital.”
“Vão para casa”
Pouco depois do pronunciamento de Biden, Trump divulgou um vídeo nas redes sociais em que se dirigia aos invasores do Congresso. “Tivemos uma eleição que foi roubada de nós. Foi uma eleição esmagadora. Todos sabem disso, especialmente o outro lado. Mas vocês têm que ir para casa, agora. Nós precisamos ter paz, lei e ordem. (…) É um período muito duro. Nunca houve uma época assim, em que foi tirado de nós. É uma eleição fraudulenta”, disse. “Vão para casa, nós amamos vocês.” A Casa Branca convocou a Guarda Nacional do Distrito de Colúmbia para reprimir os protestos. A prefeita de Washington, Muriel Bowser, decretou toque de recolher entre 18h de ontem e 6h de hoje.
Imagens difundidas pelos sites de notícias e pelas redes sociais mostraram congressistas abandonando plenário com máscaras especiais, enquanto a Polícia do Capitólio disparava bombas de gás lacrimogêneo e apontava armas para os invasores. Uma mulher, baleada no peito, morreu no hospital, segundo a emissora NBC. Um homem de 24 anos que escalava um andaime na frente do prédio caiu de uma altura de 9m e foi internado, em estado crítico. Policiais legislativos ficaram feridos. Na tribuna do Senado, um manifestante deixou-se fotografar, sentado à cadeira de Chuck Grassley, presidente da Casa. Vândalos quebraram vidraças e ocuparam gabinetes.
Chuck Schumer, líder democrata no Senado, e Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes, apelaram a Trump para que exigisse a saída imediata dos manifestantes. Horas depois de ser removido do Congresso, Pence ordenou o fim da “violência” e da “destruição”. “O protesto pacífico é direito de cada americano, mas este ataque ao nosso Capitólio não será tolerado”, avisou. “Isso é desprezível. Em qualquer outro lugar do mundo, chamaríamos isso de uma tentativa de golpe. Isso é o que acho que é”, disse à CNN o deputado republicano Adam Kinzinger, que enviou um recado a Trump: “Você já era e seu legado será um desastre”.
Especialistas
Alexa Bankert, professora de ciência política da Universidade da Geórgia, admitiu ao Correio que a invasão ao Capitólio poderá ter efeito reverso para Trump. “Mesmo os mais ardentes simpatizantes do presidente no Congresso entendem o dano causado por sua retórica e devem abandonar a lealdade condicional ao republicano”, disse. Para Scott Ainsworth, colega de Alexa na mesma universidade, o comportamento de Trump em torno da eleição não tem precedentes na história política norte-americana.
Por sua vez, James Naylor Green, historiador político da Brown University (em Rhode Island), culpou Trump pela insurreição. “Ele instou as pessoas a atacarem o Congresso na tentativa de interromper o processo de reconhecimento de Biden como presidente legitimamente eleito. Os esforços para realizar um golpe de Estado mostram o desespero do presidente e seu controle sobre a baseda extrema-direita”, comentou à reportagem. Green aposta que Trump não comparecerá à posse de Biden, em 20 de janeiro, e insistirá na tese de fraude. “Eu não ficaria surpreso se ele empreendesse uma aventura internacional temerária para reforçar seu poder. Ele também perdoará sua família e, provavelmente, a si mesmo.”