Em uma votação tensa e histórica, o Senado da Argentina aprovou a legalização do aborto, independentemente da causa, até a 14ª semana de gestação. Com isso, o país junta-se a Uruguai, Guiana, Guiana Francesa e Cuba na lista de nações latinas que aprovam a interrupção gratuita e voluntária da gravidez. Comemorada por grupos feministas, a decisão foi lamentada por religiosos.
O projeto de legalização do aborto é do partido do presidente de centro-esquerda Alberto Fernández e já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados. Ontem, recebeu 38 votos favoráveis, 29 contrários e uma abstenção. “O aborto seguro, legal e gratuito é lei. Hoje, somos uma sociedade melhor, que amplia direitos às mulheres e garante a saúde pública”, escreveu o chefe de Estado em sua conta no Twitter.
Embora a aprovação tenha sido mais folgada do que o esperado, a votação, que se estendeu pela madrugada, foi tensa. Por mais de 12 horas, os parlamentares expuseram acalorados argumentos a favor e contra a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação. O suspense aumentou quando alguns membros da governista Frente de Todos deram as costas ao projeto, enquanto alguns senadores católicos votaram a favor, independentemente de suas crenças religiosas. Até o último minuto, os senadores fizeram alegações contraditórias, que iam do caráter “histórico” e “inevitável” da lei até seu aspecto “inviável” e “inconstitucional”.
Maré verde
A votação foi acompanhada por milhares de militantes feministas, que celebraram e choraram de emoção com o resultado. Além das mulheres que estavam na praça diante do Parlamento, muitas saíram às janelas e às varandas para comemorar a notícia.
Um projeto para legalizar o aborto havia sido aprovado em 2018 pela Câmara dos Deputados, mas foi rejeitado pelo Senado. A mudança foi possível graças à campanha protagonizada por milhares de jovens e grupos de mulheres, a chamada “maré verde”.
Com a aprovação, a Argentina, terra natal do papa Francisco, torna-se a maior nação da América Latina a legalizar a interrupção da gravidez. Em sua última audiência antes do fim do ano, o pontífice afirmou, ontem, em uma referência explícita a seu país: “Os cristãos, como todos os crentes, bendizem a Deus pelo dom da vida. Viver é antes de tudo ter recebido a vida. Todos nascemos porque alguém desejou para nós a vida. E essa é apenas a primeira de uma longa série de dívidas que contraímos vivendo”, disse.
Fé X pecado
A legalização, que contempla a objeção de consciência (os objetores terão a obrigação de enviar a paciente para outro centro médico), não seguiu linhas partidárias. Embora a governista Frente de Todos apoiasse o projeto, nem todos os congressistas do grupo aprovaram a medida. Alguns parlamentares votaram a favor da legalização, apesar de sua fé religiosa.
“Por que queremos impor por lei o que não podemos impedir com nossa religião?”, questionou a senadora Gladys González, do grupo opositor Juntos Pela Mudança e católica praticante, ao anunciar apoio ao projeto.O presidente Fernández, próximo ao papa Francisco, havia declarado há alguns dias: “Sou um católico que pensa que o aborto não é um pecado”.
O governo calcula que sejam realizados entre 370 mil e 520 mil abortos clandestinos por ano no país de 45 milhões de habitantes. Desde a restauração da democracia, em 1983, mais de 3 mil mulheres morreram devido a interrupções feitas sem segurança. De modo paralelo, o Congresso também aprovou a Lei dos 1.000 dias para dar apoio material e de saúde às mulheres de setores vulneráveis que desejarem levar adiante a gravidez, de modo que as dificuldades econômicas não representem um motivo para abortar.
Os opositores à interrupção voluntária da gravidez, que adotaram a cor azul, tiveram como representantes a Igreja Católica e a Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas (Aciera), que promoveram grandes manifestações nas ruas e missas ao ar livre. “A Igreja na Argentina quer ratificar que continuará trabalhando com firmeza e paixão no cuidado e serviço à vida. Essa lei que foi votada aprofundará ainda mais as divisões em nosso país. Lamentamos profundamente o afastamento de parte das lideranças do sentimento do povo, que se expressou de várias formas a favor da vida”, reagiu a Conferência Episcopal em nota.
“Hoje, a Argentina retrocedeu séculos de civilização e respeito ao direito supremo da vida”, afirmou a Aciera em um comunicado que tem como título Hoje é um dia triste. Também nos arredores do Congresso, muitas pessoas contrárias à aprovação da lei aguardaram de joelhos o resultado da votação, recebido com grande decepção.