Na entrada do Congresso, uma placa lembra os parlamentares que a Virgem de Lujan é a padroeira dos partidos políticos argentinos. No país do papa Francisco, prestes a votar a legalização do aborto, a Igreja exerce toda a sua força.
Após a aprovação recebida pela Câmara dos Deputados em 11 de dezembro, o Senado deve votar nesta terça-feira (29/12) uma lei para a interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana de gestação. Os lados a favor e contra parecem empatados. Há dois anos, uma iniciativa semelhante fracassou devido à oposição majoritária dos senadores, em meio a uma intensa campanha das Igrejas católica e evangélica.
Nos últimos dias, as duas congregações redobraram sua aposta pró-vida com várias manifestações e marchas em todo o país.
Apoio mútuo
A Constituição argentina garante a liberdade de culto. Uma reforma de 1994 eliminou o requisito de pertencer ao catolicismo para assumir a presidência da República. No entanto, manteve em seu preâmbulo a invocação a Deus, assim como o artigo segundo, que garante o amparo do governo à religião católica.
"A Igreja católica na Argentina tem uma grande capilaridade. Existe uma cultura católica muito forte no mundo político", explica à AFP o sociólogo Fortunato Mallimaci, autor de "El mito de la Argentina laica. Catolicismo, política y Estado".
"Os grupos religiosos vão em busca do apoio do Estado e o Estado, quando se sente fraco, busca apoio nos grupos religiosos. O peso da Igreja católica hoje em dia é mais político do que religioso", enfatiza Mallimaci.
Mallimaci destaca, no entanto, que desde o retorno da democracia em 1983, o catolicismo perdeu influência enquanto "o mundo evangélico cresce muito".
De acordo com uma pesquisa de 2019 sobre crenças religiosas realizada pelo Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), 62,9% dos argentinos se declaram católico, 18,9% sem religião e 15,3% evangélicos.
Neste último período democrático o país aprovou o divórcio (1987), uma lei de educação sexual integral (2006), outra para o matrimônio igualitário (2010) e uma de identidade de gênero (2012).
A Igreja e o aborto
Na Argentina, o aborto é permitido em caso de estupro ou risco de vida para a mulher desde 1921, quando governava o presidente radical (social-democrata) Hipólito Yrigoyen. Caso o atual projeto de lei seja aprovado, a interrupção da gravidez será livre até a semana 14 de gestação.
Mas caso seja rejeitado, o advogado constitucionalista Alfonso Santiago descarta uma ruptura do diálogo entre a Igreja e o governo do centro-esquerdista Alberto Fernández, promotor da lei e que se orgulha de sua boa relação com o papa Francisco, ex-arcebispo de Buenos Aires.
"Não acredito que haverá uma interrupção da colaboração em outros assuntos. Não aconteceu antes, quando foi aprovado o matrimônio igualitário", lembrou Santiago.
Embora mais de uma vez o papa Francisco tenha comparado o aborto ao ato de contratar um assassino, por enquanto permanece em silêncio neste debate parlamentar na Argentina.
Desde 2018, as organizações evangélicas lideram grandes manifestações dos opositores à legalização do aborto.
Apesar de seu crescimento constante, as igrejas evangélicas na Argentina "não têm a mesma força política que em outros países, como por exemplo o Brasil, onde contam com um bloco parlamentar", aponta Santiago.