TUNÍSIA

Uma década de revolução

No décimo aniversário do movimento que deu origem à Primavera Árabe, a população do país africano nada tem a celebrar: o desemprego, a inflação e as desigualdades continuam a despedaçar os sonhos de muitos, e a classe política parece mais dilacerada

Quando, em 17 de dezembro de 2010, o ambulante tunisiano Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo, em protesto contra policiais, era impossível prever os desdobramentos do episódio no país e no mundo árabe. O ato de desespero do jovem vendedor, na cidade de Sidi Bouzid, desencadeou uma revolta sem precedentes, que deixou quase 300 mortos apenas na Tunísia e provocou a queda do presidente Zine el Abidine Ben Ali, menos de um mês depois. E foi além, propagando-se para outros países da região, originando a Primavera Árabe.

A imolação de Bouzazi, que morreu após 17 dias hospitalizado, abriu o caminho da democracia para a Tunísia, mas, passados 10 anos, não há festa. Em Sidi Bouzid, uma imagem gigante de Bouazizi e a escultura de sua carroça, no centro da cidade, não representam mais a esperança de avanço social.

O aniversário da revolta foi uma ocasião para protestar contra um governo incapaz de alcançar alguns objetivos da revolução: trabalho e dignidade. Nenhuma visita oficial foi programada para a data. Há pouco tempo, integrantes do governo foram recebidos com pedradas.

O presidente Kais Saied, um acadêmico que reivindica os ideais da revolução, anunciou que não viajaria à cidade berço da revolução, alegando compromissos urgentes. Saied foi eleito em outubro de 2019 em um contexto de rejeição aos líderes que estavam no poder desde 2011.

Fracasso

“O ambiente não é de celebração porque se constata que o país está mal”, assinala o cientista político Hamza Meddeb. “É verdade que o país construiu a duras penas uma democracia, é verdade que avançou nas liberdades políticas, mas, 10 anos depois da revolução, constata-se um fracasso”, completa.

Nesse cenário, destacam os analistas, a classe política está mais fragmentada do que nunca desde as eleições legislativas do ano passado. Os eleitos conseguem passar à ação em um cenário de crescente necessidade social, agravada pelas consequências da pandemia do novo coronavírus.

O desemprego no país supera 15%, afetando, sobretudo, os jovens e as regiões mais afastadas. Os salários, baixos, são corroídos pela inflação e a instabilidade política aniquila a esperança de reformas profundas.

Milhares de jovens viajaram para lutar com os grupos extremistas na Síria, em guerra há quase 10 anos. Em busca de oportunidades, os tunisianos representam metade dos migrantes que chegam à Itália.

“Os tunisianos estão realmente irritados e não é o momento adequado para que os políticos visitem as cidades”, observa Hamza Meddeb. Na semana passada, o primeiro-ministro Hichem Mechichi foi recebido com pedidos de renúncia pelos habitantes de Jendouba, onde um jovem médico morreu devido às falhas no elevador de um hospital.

Greves, bloqueios nas estradas e manifestações aumentaram, nos últimos tempos, para exigir empregos, investimentos e serviços públicos básicos. “Paramos de esperar algo dos políticos. Estamos cansados de esperar”, afirmou Jamel Bouzidi, morador de Sidi Bouzid.

Dos países que protagonizaram a Primavera Árabe, a Tunísia foi o único que seguiu pelo caminho da abertura em 2011, com a adoção de uma nova Constituição e eleições democráticas.

No Egito, após três anos turbulentos e a remoção, pelo exército, de um presidente islâmico, um regime também repressivo, liderado por Abdel Fatah al Sissi, substituiu o de Hosni Mubarak. Na Líbia, Síria ou Iêmen, os conflitos gerados pelo enfraquecimento do poder central continuam fazendo estragos.

Na Líbia, a queda de Muammar Gaddafi, morto em outubro de 2011, aprofoundou a violência intertribal e grupos jihadistas aproveitaram o caos. A interferência estrangeira aumentou e envenenou um conflito que não cessou desde então.

O mesmo aconteceu na Síria, onde a guerra deixou mais de 380 mil mortes e milhões de refugiados e deslocados. Passada uma década, Bashar al-Assad é o único autocrata da Primavera Árabe ainda no cargo. A guerra, a crise econômica e as sanções internacionais mergulharam o país em uma terrível agonia.