Biden mostra a cara para o mundo
Se o tom adotado na atípica campanha eleitoral já apontava claramente o rumo, os nomes escolhidos por Joseph Biden para encabeçar sua equipe de política externa, a partir de janeiro, confirmam que o presidente eleito prepara o reengajamento dos EUA na opção preferencial pelo multilateralismo. Não apenas a escalação do time expressa uma orientação alinhada com os oito anos de Barack Obama na Casa Branca, período no qual Biden foi o vice e o porto seguro de um presidente relativamente jovem e com pouca rodagem. Trata-se de altos funcionários de Estado formados e curtidos na última adminstração democrata.
Anthony Blinken, 58 anos, será o novo secretário de Estado, ou seja, o titular no comando da diplomacia formal. Nas últimas duas décadas, esteve lado a lado com o chefe desde que o então senador, já um veterano do Congresso, presidiu a Comissão de Relações Exteriores. Pelo grau de afinidade entre os dois, a nomeação parece ratificar a impressão dos observadores de que será o próprio presidente a comandar o leme no setor. Ao contrário da experiência vivida com Obama e com outros chefes de Estado, Biden não terá um contrapeso.
No que diz respeito mais diretamente ao multilateralismo, a opção se reforça com a indicação de Linda Thomas-Grienfield como embaixadora norte-americana perante a ONU. Não poderia ser mais claro o contraste com Donald Trump, que desprezou solenemente o sistema internacional e começou o mandato enviando para o mesmo posto uma política republicana de estatura provinciana: Nikki Haley, ex-governadora da Carolina do Sul, louvada como negociadora de contratos comerciais externos para seu estado.
É talvez na estratégica função de conselheiro da Casa Branca para assuntos de Segurança Nacional que a feição “revival” do novo governo encontra, talvez, a forma mais completa. Jake Sullivan amarra múltiplas pontas da meada: diplomata de carreira, assessorou Hillary Clinton, secretária de Estado no primeiro mandato de Obama, e teve participação direta no acordo nuclear fechado em 2015 com o Irã. Compondo o “tripé”, exerceu função análoga na equipe do então vice-presidente Joe Biden.
Caminho de volta
São também três as indicações políticas mais claras feitas pelo presidente eleito quanto aos passos iniciais da diplomacia de Washington a partir da posse, em 20 de janeiro. As relações diplomáticas com Cuba, reatadas formalmente por Obama, em 2017, e praticamente congeladas por Trump, devem retomar o caminho da aproximação, ainda que permaneçam distantes da normalização plena.
Mais imediato e efetivo deve ser o retorno do país à Organização Mundial da Saúde (OMS), da qual o presidente em fim de mandato se afastou em protesto contra as linhas gerais do combate à pandemia — uma área na qual entregará ao sucessor um país absoluto na cabeça do ranking de mortos e contaminados. Igualmente clara é a decisão de reassumir o compromisso dos EUA com o Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas.
Três apitos
Do ponto de vista da diplomacia brasileira, os movimentos iniciais do novo titular da Casa Branca soam algo como o terceiro sinal da campainha anunciando aos espectadores o início iminente do espetáculo teatral. Ou, em sotaque mais local, como os três apitos cantados por Noel Rosa em uma de suas composições mais festejadas.
Passado praticamente um mês desde a eleição nos EUA, e três semanas desde que se configurou a vitória do desafiante democrata, o presidente Jair Bolsonaro segue sem cumprimentar oficialmente o novo parceiro. O chanceler Ernesto Araújo já orientou a equipe a traçar cenários para o futuro das relações bilaterais com o país que o Planalto e o Itamaraty definiram como parceiro prioritário e central — em grande medida, pelas afinidades políticas e ideológicas com o governo que começa a cerimônia de despedida.
Não tem vácuo
O reajuste indispensável de rumos na política externa, com a troca de guarda na principal potência econômica e militar do planeta, se aplica também aos laços do país com a segunda força global. A China, que consolida a posição como principal parceiro comercial do Brasil, reagiu com a habitual prontidão — e a língua afiada de sempre, a mais uma estocada do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). O “filho 03”, que o presidente chegou a considerar para chefiar a embaixada em Washington, preside a Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Pelas redes sociais, classificou o regime de Pequim como “inimigo da liberdade” e acusou-o de usar da espionagem na competição com os EUA pelo mercado da internet 5G.
Bastou a embaixada chinesa responder, alertando sobre as implicações de declarações “infames” e “inaceitáveis” para as relações bilaterais, e o vice de Bolsonaro, Hamilton Mourão, entrou em campo. Sem referir-se explicitamente aos tuítes do filho do capitão, nem esperar uma palavra oficial do Planalto ou do Itamaraty, o general tomou para si a empreitada de reparar os danos. E colocou uma vez mais em prática a máxima de que não existe vácuo na política — o que inclui a política externa.